São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Choque de auto-estima

RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA

Nos anos 90, quando a globalização radicalizava o imperativo de competitividade, estabelecendo novas imposições à sobrevivência das empresas, o escritor alemão Robert Kurz, no livro "Colapso da Modernização", alertava: "A concorrência no mercado mundial torna obrigatório um novo padrão de produtividade e qualidade, configurado pela combinação de ciência, tecnologia avançada e grandes investimentos".
Cumprir esses requisitos é um desafio persistente em todas as nações, inclusive nas ditas industrializadas, pois não se deve entender esse novo modelo global como conceito que se esgota na capacidade e qualidade da produção. Ele abrange critérios política e ecologicamente corretos e pressupostos éticos na interação entre a economia, a sociedade e o consumidor cidadão.
Conquistar todos esses diferenciais competitivos tem sido uma tarefa mais árdua para as nações emergentes, em especial da América Latina, que enfrentaram, na segunda metade do século passado, grandes turbulências políticas e econômicas cujos reflexos ainda estão presentes. O caso brasileiro é um bom exemplo.
O país emergiu de um regime de exceção nos anos 80, mas a redemocratização não teve efeito imediato na área socioeconômica. Crises subsequentes, geradas ora por conjunturas externas desfavoráveis, ora por gestão equivocada da economia e ora pela combinação dos dois fatores, tornaram mais difícil a inserção competitiva do Brasil no mercado global.
Felizmente, houve fatores importantes que minimizaram essas dificuldades e criaram condições para que, após a estabilidade econômico-monetária suscitada pelo real nos últimos oito anos, o Brasil agregasse melhores condições de competitividade. Destaca-se, nesse sentido, o papel da iniciativa privada, que jamais deixou de investir no aporte tecnológico, seja nas plantas industriais, na automação do comércio e do sistema financeiro, no universo do agribusiness e na melhoria da prestação de serviços.


Um povo que exercitou o voto como gesto de esperança não pode assistir à festa do fisiologismo


O setor industrial, por exemplo, estimulando e potencializando o esforço de investimento das empresas, sempre manteve, por intermédio do Senai, um modelo de educação profissional focado nas demandas reais do mercado, com o objetivo de formar profissionais sempre aptos aos processos produtivos de ponta e alinhados aos mais contemporâneos conceitos de cidadania.
Em São Paulo, o Senai implantou até mesmo cursos superiores nos últimos cinco anos, passando a formar tecnólogos em áreas como mecatrônica e tecnologia de meio ambiente -estratégicas sob o prisma do novo padrão produtivo mundial. Nesse aspecto, observa-se muita sintonia entre os setores público e privado paulistas, já que uma das prioridades atuais do governo do Estado foi ampliar a formação de tecnólogos, por meio de programa, em andamento, de multiplicação de unidades da Fatec (Faculdade de Tecnologia).
É estimulante visitar as escolas do Senai e assistir a centenas de jovens, nos cursos técnicos e superiores, aprendendo a trabalhar, a manejar complexos equipamentos e assimilando conhecimentos teóricos e práticos de alto nível, adquirindo, assim, grau elevado de empregabilidade e crença mais firme no seu futuro como profissionais e cidadãos. Exemplos como estes, agregados a políticas públicas em curso no Estado, como o fomento da tecnologia, o incentivo aos investimentos das pequenas e médias empresas, a organização de "clusters" nas regiões interioranas e o desenvolvimento da indústria do turismo, são ingredientes importantes para um choque de auto-estima na sociedade brasileira.
Temos problemas, sim, mas avançamos muito, inclusive no exercício da democracia, conforme foi possível constatar nas eleições de 2002.
Não basta, contudo, que a sociedade civil, como sempre tem feito, reaja às condições adversas do cenário internacional e às dificuldades econômicas e sociais persistentes no plano interno. Os homens públicos, em especial os que receberam a bênção cidadã do voto, precisam fazer sua parte para que o país siga de cabeça erguida em sua saga rumo ao desenvolvimento. Isso implica a realização das reformas ainda estagnadas, como a tributária e a previdenciária, além da modernização da legislação trabalhista, à luz da nova realidade mundial.
Nesse contexto, tarefa urgente e prioritária, inclusive em respeito ao civismo, patriotismo e forma ordeira como o brasileiro compareceu em massa às eleições de 2002, é a reforma política.
A sociedade demonstrou estar muito à frente da legislação em termos de consciência democrática. O mais importante item a ser instituído é a fidelidade, não só partidária, mas ao mandato. Um povo que exercitou o voto como gesto de esperança não pode assistir à festa do fisiologismo, como se verifica nos anúncios de mudanças para partidos instalados no poder. Quem elegeu deputados e senadores, confiando-lhes a responsabilidade de representação no Parlamento, não merece o desrespeito de ouvir que este ou aquele preferem cargos no Executivo, em vez de cumprirem seus mandatos.
O país precisa de um Código Eleitoral definitivo, que incorpore esses e outros avanços, como o voto distrital misto, a eleição direta dos suplentes de senadores e proporcionalidade população/cadeiras mais justa das bancadas dos Estados na Câmara dos Deputados.
O brasileiro entendeu plenamente ser o exercício da política o seu principal meio de atuar como sujeito da história. Mais do que nunca, é necessária a contrapartida de um choque de auto-estima, com medidas firmes e eficazes para a modernização do arcabouço legal e continuidade do processo de desenvolvimento.

Ruy Martins Altenfelder Silva, 63, advogado, é secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo e presidente do Instituto Roberto Simonsen.


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