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TENDÊNCIAS/DEBATES
"Se Deus não existe, tudo é permitido"?
("Irmãos Karamazov", Fiódor Dostoiévski)
SIM
O mundo estilhaçado e a morte libertadora
LUIZ FELIPE PONDÉ
"SE DEUS não existe e a alma é
mortal, tudo é permitido" é
um enunciado profundamente racional. Não se trata do lamento de uma mente frágil.
Os Karamazov são especialistas na
pureza da razão teórica e prática. Movimentam-se em direção aos exageros da "função razão": o objetivo é
fundamentar o mundo pela sua decomposição e posterior reconstrução
conceitual abstrata. Só que eles não
encontram esse fundamento. Ao contrário, percebem a realidade despedaçada do mundo. O "tudo é permitido"
emerge dos estilhaços do mundo.
A razão de Ivan Karamazov (muito
próxima da que o ceticismo e a sofística conhecem) percebe a vacuidade de
qualquer imperativo ético universal:
o mundo é estilhaçado pela liberdade
que a morte nos garante.
Sem Deus, perde-se a forma absoluta do juízo moral: estamos sós no
universo como animais ferozes que
babam enquanto vagam pelo deserto
e contemplam a solidão dos elementos. A morte, que devolverá a humanidade ao pó, é o fundamento último do
nosso direito cósmico ao gozo do mal.
Esse ciclo nos liberta da única forma verdadeira de responsabilidade, a
infinita. A moral é mera convenção e
não está escrita na poeira das estrelas.
O filósofo Karamazov descreve o
impasse ético por excelência: por trás
do blablablá socioconstrutivista do
respeito ao "outro", o niilismo ri da
razão. Na crítica à teoria utilitarista
do meio (social) em "Crime e Castigo", Dostoiévski já apontara o caráter
"científico" da revolução niilista fundamentada nas ciências sociais: se tudo é construído, toda desconstrução é
racionalmente permitida.
Além de desconstruir, sabemos
construir? O homem pode ser a forma
do homem?
A modernidade achou que sim.
Kant pensou que, com seu risível imperativo categórico, nos salvaria, fundando a racionalidade pura da moral.
Conseguiu apenas a exclusão cotidiana de toda forma de homem possível.
A miserável ética utilitarista (a ética do mundo possível), síntese da alma prática que só calcula, busca na
universal obsessão humana pelo prazer a fundamentação de uma ética para homens, cuja forma universal são
os merceeiros ingleses (Marx).
O humanismo rousseauniano apostou na educação para a felicidade e virou auto-ajuda.
Contra a fé em Kant e na economia,
Dostoiévski descreve nos "Demônios" a trindade que funda o projeto
do homem pelo homem: o jovem melancólico sem subjetividade (Nicolai,
o existencialista elegante), o pai e
professor preguiçoso e "sensível"
(Stiépan, o amante das modas revolucionárias em educação, poesia e ciência) e o filho niilista cínico (Piotr, o
patrono dos jacobinos, dos marxistas
e dos cientistas da economia prática,
esses burocratas da violência).
Entender esse enredo como desespero de uma alma religiosa é senso
comum banal. A banalização é um dos
modos corriqueiros de a modernidade lidar com o que não conhece (e ela
conhece muito pouco de tudo, mas é
tagarela e ama o superficial, como diria Tocqueville).
A falácia comum é a suposição de
que o intelecto teológico necessariamente teme o sofrimento. O único
medo em Dostoiévski é aquele mesmo de Cervantes: "O medo tem muitos olhos e vê coisas no subsolo". O erro de Nietzsche quando reduz a religião ao ressentimento se transformou em "papo cabeça".
O argumento dos Karamazov é um
diagnóstico, não uma oração pela salvação do homem: o sentimento real
de que deslizamos aceleradamente
sobre fina casca de gelo mortal é prova sublime do seu caráter profético. A
história aqui nos basta. Dostoiévski
anuncia a comédia trágica daqueles
que deixaram de acreditar em Deus e,
por isso mesmo, passaram a acreditar
em qualquer reforma barata.
Contrariamente ao que pensava a
risível crítica moderna da religião, o
contato com Deus fortalece o intelecto nas mais íntimas estruturas lógicas
e práticas de sua natureza.
LUIZ FELIPE PONDÉ, 47, filósofo, é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da FAAP. É autor de, entre outros títulos, "Crítica e
Profecia, Filosofia da Religião em Dostoiévski" (ed. 34).
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