São Paulo, terça-feira, 24 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O futuro do regime sindical

Entre as iniciativas a que o governo dá prioridade está a reforma trabalhista e sindical. Trato do ponto mais obscuro e importante: a mudança que se propõe do regime sindical. Não há exemplo melhor do preço que pagamos por nossa dependência mental, mais destruidora do que qualquer dependência econômica.
Acostumamo-nos a ouvir que nosso regime sindical faz parte de orientação que o Estado Novo copiou do fascismo europeu. Nesse regime, o princípio da unicidade -todo trabalhador deve ser automaticamente sindicalizado em estrutura sindical única- seria inseparável da subordinação dos sindicatos aos governos: da unicidade ao peleguismo haveria só pequeno passo. A alternativa libertadora seria adotar o sistema que prevalece de forma mais absoluta nos Estados Unidos: o pluralismo. Sindicaliza-se quem quiser e puder. As organizações sindicais são privadas; não se juntam em sistema nacional.
A experiência comparada dos países demonstra que substituir unicidade por pluralismo surte três conseqüências nocivas. A primeira é favorecer a segmentação hierárquica das reivindicações e dos acordos. Os trabalhadores relativamente privilegiados dos setores mais capitalizados da economia acertam-se com seus empregadores sem ter de levar em conta a situação de empregados menos favorecidos. A unicidade, pelo contrário, coloca muitos no mesmo barco, sob as mesmas lideranças. Fato de peso imenso em país como o nosso, em que, contrariamente ao que se supõe, a forma mais extrema e decisiva de desigualdade continua a ser a desigualdade dentro do assalariado. Pioraria com o pluralismo sindical. O segundo resultado do pluralismo é focalizar a militância no esforço difícil para sindicalizar trabalhadores em vez de focalizá-la no exercício do poder sindical já constituído. O terceiro efeito, por conta dos outros dois, é instaurar ambiente em que emprego, salário e benefícios monopolizam atenções, com prejuízo de qualquer agenda transformadora mais abrangente. A unicidade merece, por esses motivos, o apoio de quantos compreendam que estratégias produtivistas têm de basear-se em coesão social, não em jogo de dividir e imperar.
Defender a unicidade sindical. Combiná-la, porém, com medidas que fortaleçam a independência dos sindicatos -do governo e dos patrões. Tendências rivais, sejam ou não ligadas a partidos políticos, podem lutar por espaço dentro dessa estrutura sindical unitária assim como partidos políticos lutam por poder dentro da estrutura do Estado democrático. Abolir os encargos sobre a folha salarial, financiando os direitos trabalhistas com os tributos gerais, para promover a legalização dos empregados sem carteira assinada. E desenvolver meios para representar e proteger trabalhadores temporários ou precários, parte crescente da força de trabalho em quase todo o mundo.
Isso sim que é projeto para reconciliar e promover os interesses do trabalho e os da produção. Exige o que mais nos falta: clareza e coragem para pensar com nossas próprias cabeças em vez de obedecer às fórmulas institucionais e ideológicas que se nos impingem. Já que a inteligência brasileira renunciou à responsabilidade de dar imaginação institucional ao Brasil, cabe aos práticos e aos ousados completar a obra abandonada dos doutores.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O momento da verdade
Próximo Texto: Frases
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.