São Paulo, quarta-feira, 24 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Sobre a reforma do financiamento eleitoral

BRUNO WILHELM SPECK

Tramita no Congresso o projeto de lei sobre a reforma política. O texto aprovado pelo Senado no ano passado passou para a Câmara, para debate e deliberação final, e prevê basicamente duas modificações quanto ao financiamento de campanhas: aumenta significativamente o financiamento público para partidos (dos atuais R$ 120 milhões para R$ 800 milhões, aproximadamente) e o financiamento público se tornaria fonte exclusiva para custear as campanhas eleitorais.
Impulsionado pelo recente escândalo envolvendo Waldomiro Diniz e a suspeita de financiamento velado de campanhas eleitorais, líderes do governo manifestaram publicamente a sua disposição em apressar esse projeto.


O financiamento público exclusivo não representa passaporte para uma terra sem males


O financiamento de partidos e eleições é um assunto espinhoso em praticamente todas as democracias modernas. Não há modelos prontos, mas existem tanto experiências bem-sucedidas como fracassos que devem ser levados em conta pelo legislador nacional. Apresento a seguir três teses sobre a oportunidade e a modalidade da reforma do financiamento eleitoral.
1) O financiamento privado de partidos e eleições não é um mal em si.
É importante lembrar que existe uma gama de fontes privadas para financiar a competição eleitoral e as máquinas partidárias. Seria um equívoco condená-las como um todo. Assim, as contribuições regulares de filiados refletem o enraizamento social dos partidos; as contribuições em época de campanha são manifestações legítimas de apoio às candidaturas. O problema do financiamento privado não reside na origem privada dos recursos. Nas democracias modernas o aporte de pequenas doações é considerado benéfico. Muitos países, como a Alemanha, incentivam os partidos a buscarem esse tipo de financiamento.
O vício está na diferença entre esse "grassroot money" e as contribuições de valor elevado, o dinheiro plutocrático, que torna a competição desigual e estabelece laços de dependência, fazendo a representação viciada na origem. A proposta de reforma política em tramitação no Congresso não estabelece essa diferença. Veda indiscriminadamente todas as fontes privadas de financiamento para as campanhas eleitorais, sem se dar ao trabalho de separar o joio do trigo. E aposta no financiamento público. Aposta tudo, porque quer que o dinheiro do tesouro seja a única fonte de financiamento das campanhas.
2) O financiamento público exclusivo não é a salvação de todos os males.
Hoje há poucas democracias que não conheçam alguma modalidade de subsídio público aos partidos, na forma de isenção tributária, acesso gratuito a rádio e televisão ou aportes em espécie dos cofres públicos. A idéia é que, através da garantia de certo patamar de recursos públicos, a pressão pela busca de grandes doações privadas seja diminuída. Não há hoje país que tenha introduzido o financiamento público exclusivo, substituindo por completo o financiamento privado em todas as suas modalidades. A Alemanha, freqüentemente citada nesse contexto, caracteriza-se por combinar o financiamento público pesado com praticamente nenhum limite quanto ao financiamento de partidos por pessoas físicas ou empresas.
É importante reconhecer os riscos políticos vinculados ao financiamento público. Os partidos tendem a enfraquecer seus vínculos com a sociedade e distribuir generosamente recursos em causa própria. Esse argumento merece lugar central na discussão, já que a debilidade de vínculos orgânicos com a sociedade é uma das principais deficiências de nosso sistema partidário.
Outra preocupação é que o financiamento público fecha algumas portas de manipulação e pressão ilícita, mas nem todas. De forma nenhuma o financiamento público elimina o financiamento oculto para partidos. Nada mudará nesse sentido, apesar da insistência de muitos em atar o projeto da reforma política a esse tema. O financiamento público exclusivo não representa passaporte para uma terra sem males. Ele cria um monopólio estatal, não elimina o caixa-dois para partidos e sobrecarrega a Justiça Eleitoral.
3) O financiamento público nos moldes propostos desestimula a competição política e favorece o situacionismo.
Uma das questões a serem respondidas em sistemas com financiamento público de partidos é quem recebe quanto e por quê. Há vários modelos aplicados pelos diferentes países, com justificativas diversas. O financiamento igualitário (cada partido recebe o mesmo valor) é defendido com o argumento de que todos devem ter a oportunidade de competir em condições iguais.
Outros sistemas alocam recursos de forma proporcional. Mas proporcional a quê? Há países que reembolsam os custos da campanha proporcionalmente aos votos que serão obtidos na eleição. Esse sistema de reembolso posterior à eleição é praticado na Costa Rica. Uma vez que se baseia exclusivamente no sucesso da disputa eleitoral em questão, não considerando o histórico do partido ou outras qualificações, o método é altamente competitivo.
Outros países levam em conta o histórico dos partidos, distribuindo recursos segundo o sucesso eleitoral no passado. É o caso do Brasil. Esse princípio também norteia o projeto em discussão, pois 85% de todos os recursos disponíveis para as campanhas eleitorais seriam alocados segundo tal critério. O problema com isso é que o método tende a dar vantagem àqueles que ganharam as últimas eleições e, conseqüentemente, estão no governo. A oposição ou novos competidores recebem menos recursos e têm menos chances na próxima eleição. O situacionismo é protegido e a oposição fica em desvantagem.
É altamente questionável se o sistema atual, que beneficia o situacionismo, seria adequado caso os valores do financiamento público fossem aumentados ou até se tornassem a única fonte legal de financiamento da disputa política.

Bruno Wilhelm Speck, professor de ciência política na Unicamp, é diretor de pesquisas da Transparência Brasil.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Daniel Gazit: A morte de um "moderado palestino"

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.