São Paulo, sexta-feira, 24 de março de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pizza monumental

CLAUDIO WEBER ABRAMO

Informações extra-oficiais dão conta de que entre as medidas que virão a ser propostas pela Sub-relatoria de Normas da CPMI dos Correios (de responsabilidade do deputado Onyx Lorenzoni, PFL-RS) estaria a imposição de uma norma segundo a qual 99% dos cargos em comissão na esfera federal (a saber, os cargos sujeitos a indicação política) precisariam ser ocupados por funcionários de carreira.


Perto dessa pizza monumental, as que já se assaram ao longo da crise se reduzem a dimensões microscópicas


Embora com aparência saneadora, a providência joga para a platéia, escamoteia as raízes reais da corrupção, preserva os tradicionais esquemas de loteamento político de que todos os partidos se beneficiam quando no poder e não altera em nada a disfunção grave tão bem exemplificada no episódio dos Correios.
O principal problema com as nomeações políticas não está em guindar-se pessoas de fora da administração às funções públicas, mas no fato de se poder nomear. É o poder de nomeação que permite ao presidente da República, ao governador do Estado e ao prefeito negociar apoios parlamentares com os partidos políticos. "Você me apóia e, em troca, fica com tais e quais diretorias". O que os beneficiários fazem nesses cargos foi exibido claramente no caso dos Correios: negócios.
Observe-se que nenhum dos funcionários dos Correios acusados de montar quadrilhas no interior daquela estatal vinha de fora, assim como nenhum dos servidores acusados de dirigir licitações nas empresas do complexo Petrobras (e em todas as outras estatais, é claro) é oriundo de fora dos respectivos quadros funcionais. O que os caracteriza é o fato de serem, todos, integrantes de algum esquema partidário. Todos foram indicados para desempenhar as suas funções no âmbito de negociações destinadas a compor a "base parlamentar" do governo.
Uma vez que a ocupação de funções de responsabilidade depende de indicação política, os funcionários de carreira de estatais e da administração direta aprenderam que, se não se encaixarem em algum esquema, terão prejudicada sua possibilidade de ascensão.
Não é a origem do indivíduo -se de dentro ou de fora do funcionalismo- que determina sua maior ou menor propensão a envolver-se em roubalheiras, e sim o morubixaba partidário ao qual deve a sua indicação.
Nos Estados e municípios, as coisas funcionam precisamente da mesma forma, não importando qual seja o partido que governe. Sob esse ponto de vista, todos os partidos são iguais -loteiam o Estado em nome da governabilidade e deixam a coisa rolar solta nos feudos que distribuem, porquanto "deixar a coisa rolar solta" é parte integrante da negociação. Se vigiassem de perto e de fato procurassem impedir o assalto aos cofres públicos que se dá nessas capitanias, as bases do negócio seriam rompidas.
Foi isso o que se viu no caso do deputado Roberto Jefferson. Levantaram uma pontinha dos esquemas que rolavam nos Correios, e o deputado pôs a boca no trombone.
A liberdade de nomear é também a origem real do problema do nepotismo no Judiciário. Como declarou uma juíza alagoana, não adianta proibir a nomeação de parentes, pois os juízes continuarão a nomear os amigos. A saber, olha-se para a adjetiva nomeação de parentes quando a atenção deveria voltar-se para o substantivo nomeação.
Por se beneficiarem da mesma festa de nomeações, as funções de gabinete dos Legislativos de todos os três níveis são exercidas por uma rataria de cabos eleitorais (pagos por nós, naturalmente) sem nenhuma preocupação com a função fiscalizadora e legisladora desse Poder. E os parlamentares ainda reclamam do desvirtuamento de suas funções. Ora, são eles os primeiros a promover esse abastardamento.
A interferência constante dos interesses políticos na indicação de pessoas para ocupar as posições de maior responsabilidade nas estruturas públicas dos três Poderes e das três esferas destrói os mecanismos de carreira e torna impossível dotar as estruturas públicas de corpos estáveis voltados para o cumprimento de suas respectivas missões institucionais. A facilidade de nomeação literalmente corrompe as carreiras públicas. Por isso, a medida proposta pelo deputado Lorenzoni não terá efeito nenhum na redução da corrupção.
É a prerrogativa da nomeação que joga tudo na mesma pocilga em que se misturam interesses políticos, pessoais, familiares e criminosos em nome da governabilidade.
Se prosseguirem no fingimento de que o problema está nas pessoas nomeadas, e não na capacidade de os dirigentes nomearem, os responsáveis pelo relatório da CPMI dos Correios deixarão de cumprir o que seria seu principal papel.
Perto dessa pizza monumental, aquelas que já se assaram ao longo da crise se reduzem a dimensões microscópicas.

Claudio Weber Abramo, mestre em lógica e filosofia da ciência pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção.
www.transparencia.org.br
crwa.zip.net



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