São Paulo, terça-feira, 24 de março de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCOS NOBRE

O papa vai à guerra

O PAPA ESTÁ reunindo seu exército. Primeiro, invocou os mortos: padres e freiras aliados do ditador Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola. Depois, reabilitou os excomungados integristas, cujo líder nega o Holocausto nazista. Agora, aliou-se às forças obscurantistas que rejeitam o uso da camisinha como meio eficaz de proteção contra a Aids. Na mesma África que viu a Igreja Católica, durante séculos, exercer o papel de principal aliada da rapina escravagista.
É um chamamento a uma nova cruzada. E o raciocínio do papa tem se mostrado de uma cristalina simplicidade: mais vale um exército menor, mas mais aguerrido, do que uma multidão de crentes com pouca disposição para o combate. Seu antecessor, João Paulo 2º, respondeu ao desafio dos fundamentalismos religiosos com uma volta ao mistério do sagrado, mas também com o diálogo ecumênico. O então cardeal Ratzinger impôs o silêncio obsequioso aos que divergiam da sua orientação e substituiu um a um os bispos mais críticos.
Escolhido papa, Bento 16 responde aos fundamentalismos religiosos com a criação de um fundamentalismo católico. Não há dúvida de que, como fenômeno social, a fé declinou no último século. Mas prossegue sendo uma referência essencial para a vida da grande maioria das pessoas. A mudança realmente decisiva se deu na maneira de demonstrar essa fé.
Hoje é muito comum as pessoas transitarem de uma religião para outra. Ou se declararem membros de uma determinada religião e, ao mesmo tempo, frequentarem rituais e cultos de outras religiões. É muito comum também que crentes não aceitem integralmente os preceitos de conduta de vida de suas religiões sem por isso deixarem de se identificar com sua adesão religiosa.
A fidelidade -o atributo essencial da fé- não é mais simplesmente a uma religião, mas, antes, à transcendência, ao sagrado e ao místico. Não se trata apenas de tolerar externamente a existência de outras religiões, mas de aceitar a ideia de que é possível e legítimo expressar a fé de diferentes maneiras, em diferentes religiões. Essa nova forma da tolerância religiosa mostra que é possível uma certa separação entre fé e religião sem que elas desapareçam por isso.
O fundamentalismo religioso prega uma completa identificação de fé e religião. É uma recusa da forma atual do pluralismo religioso e político. O fundamentalismo praticado hoje pelo Vaticano destrói não apenas milhões de vidas. Destrói também as bases de uma convivência tolerante que levou séculos para ser construída.

nobre.a2@uol.com.br

MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O Estado laico
Próximo Texto: Frases

Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.