São Paulo, quarta, 24 de março de 1999

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Dígrafo


A literatura, como o corpo da pessoa amada, não é objeto de conhecimento científico; é objeto de prazer


RUBEM ALVES

Uma das minhas alegrias são as cartas que recebo das crianças. Escrevem-me a propósito de meus livros infantis. Alegro-me sabendo que esses livros, além de dar prazer, fazem as crianças pensar. As crianças me entendem. Meu filósofo mais querido, Nietzsche, escrevia para adultos eruditos, e eles não o entendiam. Desanimado com a estupidez dos adultos, ele escreveu: "Gosto de me assentar aqui, onde as crianças brincam, ao lado da parede em ruínas, entre espinhos e papoulas vermelhas. Para as crianças, sou ainda um sábio; e também para os espinhos e as papoulas vermelhas". Os adultos não o entendiam porque ele escrevia como criança.
Pois eu recebi carta de um menininho. Não vou revelar o nome dele para não comprometê-lo perante a professora. Li a cartinha dele tantas vezes que já a sei de cor. Transcrevo: "Prezado Rubem (...). Li o seu livro "O Patinho que Não Aprendeu a Voar'. Eu gostei, porque aprendi que liberdade é fazer o que se quer muito mesmo. Escreva para mim. E eu tenho uma professora demais. Com todos os livros que a gente lê, ela manda fazer ditados, encontrar palavras com dígrafo, encontro consonantal e encontro vocálico".
Minha alegria inicial foi interrompida por um estremecimento de horror: eu não sei o que é dígrafo! Meu Deus! Ele, um menininho de 9 anos, já sabe. E eu não. O dígrafo tem de ser coisa muito importante, essencial, para ter sido incluído no currículo de um menininho de 9 anos. Com certeza, é preciso conhecê-lo para ser iniciado nos prazeres da leitura, a única coisa que importa.
E eu não sabia disso. Não sei o que é dígrafo. Duvido da minha competência literária. É certo que Guimarães Rosa, Adélia Prado e Manoel de Barros, ao escrever, tinham de ter sempre presente na consciência a importância dos dígrafos. E o pior: recusei-me a saber o que é dígrafo quando uma professora tentou salvar-me da minha ignorância.
Meu pensamento é poético. Recusa-se a andar em linha reta. Dança, deleita-se em analogias. Apareceu-me logo uma analogia de natureza sexual, provocada por Roland Barthes, que liga a escritura ao erotismo: o texto como objeto de prazer, cujo manual de delícias, seu "Kama Sutra", há de ser aprendido. O par de amantes está abraçado, corpos e almas incendiados pelo desejo. A mão do amante desliza vagarosa pela pele lisa da amada. Mas ele, professor de anatomia, em virtude dos seus saberes científicos e dos seus hábitos, em vez de ir recitando docemente textos do "Cântico dos Cânticos" ou poemas eróticos de Drummond, não pode resistir à compulsão de enunciar os nomes científicos dos músculos do corpo da amada. Assim termina uma noite que poderia ter sido uma noite de amor. A ciência triunfa -ele não errou nem um nome-, mas o amor fracassa.
Pois é isso que acontece naquela aula em que as crianças aprendem não os prazeres do texto, mas os nomes anatômicos de sua gramática. Há uma razão para isso: o prazer da leitura de um texto não pode ser avaliado. É coisa subjetiva. Não é científico. Mas dígrafos, encontros consonantais e vocálicos, sim. A professora, coitada, não é culpada. Ela sabe que sua função é cumprir ordens que vêm de cima, dos especialistas. Há um programa a seguir. Ela obedece. Já nem se atreve a pensar.
Wittgenstein diz que o sentido de uma palavra é o uso que dela se faz. Quais os usos possíveis da palavra "dígrafo"? Não serve para erotizar o texto. Não torna o texto mais saboroso nem aumenta a gula literária do aluno. O texto não fica mais claro quando seus dígrafos são grifados. Tentei imaginar uma conversa inteligente em que a palavra "dígrafo" entrasse. Não consegui formular uma única frase humana.
Quando eu estudei, acho que o termo "dígrafo" ainda não havia sido inventado por algum gramático. Mas os infinitamente variados nomes da análise sintática já existiam. A inventividade dos gramáticos não tem fim! Estudei muito a análise sintática. Sofri tanto que, naquele tempo, escrevi num relatório para o colégio em que estudei, o Andrews, no Rio, que eu queria ser engenheiro; eu era bom em matemática, mas não gostava das coisas da língua. A análise sintática me ensinou a ter raiva da literatura. Só muito mais tarde, depois de esquecer tudo o que aprendera na análise sintática, aprendi as delícias da língua. Aí, parei de falar os nomes anatômicos dos músculos da amada. Lia e me entregava ao puro gozo de ler.
Acho que as escolas terão realizado sua missão se forem capazes de desenvolver nos alunos o prazer da leitura. Ele é o pressuposto de tudo mais. Quem ama ler tem nas mãos as chaves do mundo. Mas o que vejo acontecendo é o contrário. São raríssimos os casos de amor à leitura desenvolvido nas aulas de estudo formal da língua.
Paul Goodman, controvertido pensador norte-americano, diz: "Nunca soube de nenhum método para ensinar literatura que não terminasse por matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto pela literatura tem dependido de milagres aleatórios, que estão ficando cada vez menos frequentes".
Vendem-se, nas livrarias, livros com resumos das obras literárias que caem nos vestibulares. Quem aprende resumos de obras para passar no vestibular aprende mais que isso: aprende a odiar a literatura. Esta, como o corpo da pessoa amada, não é objeto de conhecimentos científicos; é objeto de prazer.
Sonho com o dia em que as crianças que lêem meus livrinhos não terão de grifar dígrafos e em que o conhecimento das obras literárias não será objeto de exames vestibulares: os livros serão lidos pelo simples prazer da leitura.


Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Entre a Ciência e a Sapiência: o Dilema da Educação" (Edições Loyola), entre outras obras.




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