São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2000


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Drogas e prioridades


A podridão esquerdista é pura e sem mácula como uma hóstia consagrada


OLAVO DE CARVALHO

José Carlos Dias, ao sair do Ministério da Justiça alertando o governo para "não transigir com os reacionários e a direita", mostrou que estava no cargo menos para combater o tráfico de drogas do que para fazer política de esquerda. Que esses objetivos fossem conflitantes, nada mais natural: a esquerda fez a apologia das drogas desde a década de 60 e é moralmente responsável pela disseminação do vício.
Se, passados 40 anos, a troca de gerações no poder eleva um esquerdista à posição de repressor oficial do tráfico, ele pode até se esforçar para dar uma aparência verossímil ao seu desempenho, mas acabará se traindo mais dia menos dia e confessando que sua luta não era contra os traficantes, e sim contra "a direita".
De fato, como poderia desejar mover guerra ao tráfico um adepto confesso da liberação das drogas? Tanto mais que o ex-ministro não se limitou a suportar como formalidade incômoda seu papel de comandante nessa luta, mas arrogou à sua pessoa o controle dos meios práticos de combate, condenando iniciativas independentes.
Como explicar o ciumento apego desse homem ao comando de uma guerra que declaradamente não era a sua, exceto pela hipótese de que ao assumi-lo tivesse outros objetivos, mais discretos e a seu ver mais relevantes?
Para um esquerdista, a luta ideológica é tudo. Todos os demais objetivos e desejos humanos, por mais elevados e urgentes, devem ser subordinados a essa exigência primeira, única e obsediante: derrubar a democracia capitalista, instaurar em seu lugar o império da "nomenklatura". O combate às drogas não constitui exceção.
Se nas circunstâncias do momento ele serve acidentalmente ao supremo objetivo político, pode até ser usado. Se é inútil ou indiferente a esse fim, deve esperar pacientemente na longa fila de prioridades. E, se por acaso se opõe aos intuitos revolucionários, deve ser substituído pela propaganda das drogas e pela resistência a todo esforço repressivo, como o foi nos anos 60 e 70.
Os esquerdistas, enfim, não têm nada contra as drogas ou a favor delas: simplesmente servem-se delas ou da sua repressão conforme lhes convenha.
Não estou pondo em dúvida a moralidade pessoal do ex-ministro, estou apenas dizendo aquilo que sempre disse: que não existe nem pode existir esquerdista intelectualmente honesto, que esquerdismo é, por definição, desonestidade intelectual.
Essa desonestidade pode permanecer disfarçada durante algum tempo, mas desponta em toda a plenitude da sua feiúra sempre que um esquerdista sobe a um cargo de poder no "Estado burguês": aí não é mais possível esconder a dupla lealdade que o compromete, de um lado, com a defesa do Estado e, de outro, com a sua destruição.
Por melhor a intenção que alegue, ele terá de apelar a todas as complacências dialéticas de uma moralidade frouxa para se acomodar a uma condição objetivamente contraditória. Ninguém pode passar por isso sem se corromper interiormente e sem espalhar no ambiente os germes da sua inconsistência.
Ser esquerdista, nessas horas, é necessariamente incorrer na maldição bíblica: "bilinguis maledictus", maldito o homem de duas línguas.
Isso se tornou patente não só no caso do ex-ministro Dias como também no do ex-subsecretário da Segurança do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares, criatura bifronte que com uma de suas cabeças perseguia os policiais envolvidos no tráfico e com a outra dava respaldo ao amigo banqueiro para ajudar um traficante a estudar guerrilha.
A explicação do aparente paradoxo reside, como sempre, na unidade do critério ideológico subjacente às ações opostas: há um tráfico bom e um tráfico mau. O mau é aquele que se alia a velhas elites policiais comprometidas com o passado, com o regime militar e, numa palavra, com a "direita". O bom é aquele que almeja fazer uma parceria com os guerrilheiros de Chiapas para armar no Brasil a maior guerra civil de todos os tempos e instaurar aqui o "reino de Deus na Terra", que é como frei Betto, uma indiscutível autoridade em assuntos celestes e terrestres, denomina o regime cubano.
A banda podre não é podre por ser podre, mas por ser "de direita". A podridão esquerdista é pura e sem mácula como uma hóstia consagrada.
Confirma-o a beatificação de João Moreira Salles, celebrada na sala da Cinemateca pela fina flor do radicalismo chique quando do lançamento do filme "Notícias de uma Guerra Particular", um ataque moralista ao hediondo costume que os policiais têm de atirar nos traficantes que atiram neles.
Contra esse modo "militaresco" (sic) de lidar com os pobres e oprimidos capitães do crime, o seráfico cineasta propõe um método alternativo mais humano e cristão: dar-lhes dinheiro para que vão ao exterior aprimorar seus conhecimentos da técnica de matar.
Perseguir os traficantes, ajudá-los ou simplesmente esquecê-los é, pois, para a mentalidade esquerdista, uma simples questão de oportunismo.
Prioridade, mesmo, só existe uma: eliminar a execrável "direita", seja com a ajuda dos traficantes, seja a despeito deles, seja enterrando-os na mesma cova com os reacionários. O ex-ministro Dias pode, na sua imaginação subjetiva, ter tentado levar a sério o papel de supremo comandante do combate às drogas. Mas seu velho comprometimento ideológico, mais durável e exigente que as obrigações passageiras de um cargo público, acabou por prevalecer. Outro tanto passou-se na alma de Luiz Eduardo Soares.
Se fosse possível existir um esquerdista intelectualmente honesto, esse homem de exceção compreenderia que a erradicação do flagelo das drogas é um objetivo que deve estar acima de toda picuinha ideológica, que esquerdistas, direitistas e quantas mais facções políticas existam devem unir-se incondicionalmente numa guerra da qual depende a salvação das futuras gerações. Mas esse homem não é o ex-ministro Dias,


como também não é Soares.
Olavo de Carvalho, 52, jornalista e escritor, é autor de "O Jardim das Aflições" (Diadorim), entre outros livros.





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