São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A democracia e a água do banho

GILBERTO DUPAS

Alguns intelectuais utilizam certa dose de arrogância na avaliação da democracia e de seus resultados. Peter Hakim, presidente do Diálogo Interamericano de Washington, saiu-se com essa: "Os eleitores peruanos têm um talento especial para escolher mal seus presidentes, e estão prestes a fazer isso novamente". Apostando que uma vitória de Humala criará um outro Chávez, Hakim só agora descobriu que "sucesso macroeconômico" não basta se a miséria e a exclusão social crescem.
Aqui em nossas plagas, Dionísio Dias Carneiro vaticina-nos uma "rota tormentosa". Diz que "graças aos esforços dos últimos anos" -imagina-se que se refira ao período Fernando Henrique Cardoso- a atual gestão pode praticar uma política onde "os mercados e os miseráveis, a quem o governo transfere dinheiro de impostos e de dívida nova, [...] preferem ignorar o que está por trás desse processo porque, cada um a seu modo, precisam sobreviver".
Garante que o país caminha "rumo ao atoleiro da ingovernabilidade no próximo termo presidencial", não esclarecendo se esse quadro trágico vale com qualquer eleito. A questão central é como algumas elites sonham a sua democracia. Essa grande utopia política, magnífico arranjo que pretende governabilidade com cidadania, incorporou-se aos valores ocidentais de modo radical; e compõe, com o de livre mercado, o grande bordão do atual discurso hegemônico. Mas ambos os conceitos são utilizados com grande ambigüidade, visando preservar privilégios: o do livre mercado, pretende-se que seja praticado integralmente somente pelos mais pobres; e o de democracia, só merece elogios se as urnas consagram candidatos que agradam as elites econômicas.


Os conceitos [de democracia e livre mercado] são utilizados com ambigüidade, visando preservar privilégios

Quando a prática democrática unge Chávez, Evo Morales ou Humala, essas mesmas elites tendem a desqualificar o regime; ou tentam melar o jogo. Na "democracia" imposta à bala no Iraque, Condoleezza Rice reclamou que o primeiro-ministro eleito em meio a poças de sangue é fraco demais. Muita gente lembrou, com ironia, que Saddam Hussein talvez fosse o candidato forte "ideal".
No Brasil, em pleno exercício da democracia, os discursos radicais são contra "a corrupção que assola o país", sem dúvida um mal muito grave. Mas a história mostra que, no mais das vezes, a corrupção é usada para manter privilégios justamente das elites. O governo Lula meteu-se em amplas encrencas nessa área, aparentemente inovando no amplo varejo e no pouco refinamento dos esquemas; mas, ainda assim, dentro da infeliz e longa tradição local. A crença na democracia supõe que seus instrumentos em pleno funcionamento -incluindo o trabalho ativo de promotores e procuradores- dêem plenamente conta de investigar com rigor, como manda a lei. E, com isso, faça deslocar para o âmbito próprio -a Justiça e a polícia- as ações necessárias para coibir e punir. Uma hipótese razoável é até supor que a sociedade como um todo está hoje mais exigente e intolerante que ontem com abusos.
Para quem duvida, recomenda-se a leitura da autobiografia de Samuel Wainer, revista por Augusto Nunes, reveladora com sobras dos padrões éticos vigorantes nesta República em períodos relativamente recentes. O que não podemos é manietar o país, sob o pretexto da corrupção, especialmente resumindo o essencial debate nacional da campanha eleitoral a uma sucessão de crônicas à Nelson Rodrigues. Urge discutir no Brasil um projeto nacional que permita, ainda que tardiamente, sua inserção na irrefreável lógica global com o mínimo de discernimento e alternativas estratégicas, como conseguiram nos últimos 15 anos países tão diferentes como a Coréia do Sul, a Índia e o Chile.
Eles cresceram no período cerca de 130% (mais de 5% ao ano), enquanto nós marcamos passo com 36% (2% ao ano, ou pífios 0,7% per capita); tanto no governo FHC como no de Lula, acabamos seduzidos pelo discurso hegemônico de que bastava abrir e estabilizar, com tudo o mais nos sendo dado por acréscimo.
Não podemos admitir que um projeto alternativo para a economia do país -que defina prioridades estratégicas, revendo juros e câmbio- não encontre espaço para ser discutido. O candidato da oposição capaz disso foi preterido; e disputa o governo de São Paulo. A estratégia geral oposicionista parece ser, como lembrou Alon Feuerwerker, a de matar o capitão, mesmo que para isso tenham que afundar o navio; aliás, muito facilitada pelo próprio governo, a espalhar fartas iscas aos tubarões.
Se de fato acreditamos na democracia, temos que confiar na capacidade do regime de dar conta da crise dos ilícitos. A oposição tem todo o direito, e o dever, de ficar muito atenta. Mas sua principal contribuição à democracia seria mobilizar seu talento e convencer os eleitores à alternância com projetos concretos, mostrando com alternativas se é hora de mudar. Esfregar demais nossa jovem democracia com o pelo duro de retóricas radicalmente maniqueístas pode pô-la a perder-se pelo ralo, junto com a água do seu banho.

Gilberto Dupas, 63, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais, é autor de "Atores e Poderes na Nova Ordem Global" (Unesp), entre outros.

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