|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
KENNETH MAXWELL
História contrafactual
DOIS PODEROSOS símbolos
históricos brasileiros estavam em exibição nesta semana, ou deveriam estar. Em resumo, "Tiradentes", de um lado, e
"1808", do outro.
Trata-se de mitologias em certa
medida inventadas: o mito cultivado pela Velha República, no século
19, em torno do alferes Joaquim
José da Silva Xavier, ante a nova
mitologia que vem emergindo com
a reabilitação do príncipe herdeiro
dom João no bicentenário de sua
chegada ao Rio de Janeiro a fim de
estabelecer uma corte européia
transoceânica em solo brasileiro.
Os mineiros modernos fazem tudo o que podem a cada Dia de Tiradentes, como fizeram na segunda-feira, para fazer da solene lembrança de aspirações tragicamente
abortadas de independência, república progressista e constitucional
e soberania nacional -defendidas
por Tiradentes e seus colegas de
conspiração em 1789- um circo
político paroquiano. Os cariocas,
enquanto isso, fizeram da celebração do 1808 uma desculpa para "re-portuguesar" a historiografia do
período e celebrar todas as coisas
que Tiradentes havia tentado rejeitar e repudiar: monarquia, deferência e sujeição às preocupações e
envolvimentos europeus.
Estranhamente, não sabemos
que aparência tinha Tiradentes. Os
fragmentos de documentação que
sobrevivem do século 18 indicam,
porém, que era carismático, persuasivo, contencioso, inimigo das
convenções e corajoso. Para
"1808", por outro lado, temos um
rosto definido com muita clareza
em múltiplos retratos: o príncipe
regente, dom João, era certamente
desprovido de carisma, cronicamente indeciso, muito acomodado
e excessivamente gordo e feio.
Mas um desses homens, Tiradentes, fracassou, enquanto o outro, dom João, apesar de toda a sua
indecisão, agiu quando era necessário agir e tomou a extraordinária
medida de transferir a corte portuguesa ao Brasil -onde ele estaria
seguro contra as ameaças de Napoleão e do exército deste, bem como
mais independente da Grã-Bretanha e de sua poderosa marinha. Tiradentes tentou mudar a história;
dom João conseguiu.
As conseqüências desse fracasso
e desse sucesso, sem dúvida, ajudaram a fazer do Brasil o que ele é. O
legado de dom João envolvia continuidade, autoridade, centralismo,
burocracia e unidade territorial. O
caminho da rebelião, democracia,
federalismo e cidadania participativa que Tiradentes propunha não
foi seguido.
Será que o Brasil teria se saído
melhor caso Tiradentes tivesse
triunfado? É impossível dizer. Mas
certamente teria sido diferente.
KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Mudanças radicais Próximo Texto: Frases
Índice
|