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Vantagens de um monoglota
ROBERTO MUYLAERT
Por ser monoglota, o presidente Lula está sempre à vontade, em qualquer entrevista que enfrente, nos diversos países que visita
EXISTEM PALAVRAS corriqueiras
em francês que ajudam a definir
o status internacional de um
brasileiro, mesmo que ele não domine o idioma gaulês. Em certas camadas sociais são bem conhecidas, e
quase obrigatórias, expressões como
"noblesse oblige", "à propos", "faute
de mieux". E não é que noutro dia o
presidente Lula soltou um garboso
"en passant"? Seguido por um comentário dele mesmo: "Nada mal
para quem há algum tempo dizia "menas gente'".
Enquanto nos regozijamos com o
seu vocabulário internacional enriquecido, devemos lembrá-lo, sem ironia, de que uma das vantagens que ele
leva como presidente do Brasil é o fato de ser um monoglota convicto, que
ganhou o mundo sem se preocupar
em falar outro idioma. E sem complexo de inferioridade por não ser poliglota, característica que comunga
com os norte-americanos.
Nesse quesito, eles são insuperáveis. Conheci um dirigente de filial de
uma multinacional americana situada no Brasil que, depois de cinco anos
vivendo por aqui, continuava fazendo
seus discursos em inglês. O divertido
é que ele fazia questão de terminar a
fala com um sonoro "obrigado", pronunciado com certa dificuldade, após
o que abria o sorriso da vitória, como a
dizer: "Não passei incólume pelo idioma do país que me acolheu tão bem
nos últimos cinco anos".
É sábio o protocolo que manda cada
presidente se expressar em sua própria língua, condição de igualdade garantida pelos intérpretes, para a comunicação entre líderes de países
soberanos.
Das cordas vocais de Lula saem,
mundo afora, vocábulos pronunciados na nossa língua portuguesa, para
que as altas patentes de governos estrangeiros comecem a se acostumar,
desde já, com o som do idioma de um
país que, segundo "The Economist",
poderá ser uma superpotência de petróleo, assim como é gigante agrícola.
Por falar em poliglota, não há nada
mais extenuante para quem tem bom
domínio de um idioma estrangeiro do
que entrar numa longa reunião de alto nível, no exterior, com grandes interesses em jogo, tendo de desenvolver um raciocínio complexo em outra
língua, com o esforço adicional e simultâneo de encontrar as palavras
exatas, no momento certo, para expor
suas idéias. Em tal situação, a inteligência aparente do indivíduo baixa de
20% a 30% em relação a quem debate
em seu próprio idioma.
Nesse quesito, os brasileiros são
campeões do servilismo idiomático,
estando sempre prontos a tentar falar
a língua alheia, mesmo sem conhecê-la direito. Já vi um brasileiro na Disney (EUA) mostrando erudição à moça que recolhia seus ingressos: "Parla
espanhol?".
Eu mesmo me flagrei, quando estive na China, tentando dialogar com
um habitante local, amável monoglota lá da língua deles. Ele sorria e me
oferecia chá o tempo todo. Colonizado, tentei me entender com ele em inglês, que se mostrou tão ineficaz, como instrumento de comunicação, como se eu tivesse usado a minha própria língua em primeiro lugar.
Tenho um tio que implica com
quem conhece muitos idiomas, segundo ele, cultura de "porteiro de hotel". O que ele prestigia é o português
bem falado, indignando-se com a desnecessária e deselegante sucessão de
gerúndios com que somos contemplados diariamente. Em especial nos
serviços de telemarketing e no atendimento das companhias telefônicas
e de TV por assinatura.
Situa-se ali o ninho da serpente dos
gerúndios inúteis, pronunciados pelas "gerundivas", funcionárias que
atendem ao telefone dessas empresas. Durante a infindável espera para
ser atendido, uma gravação assegura
que "sua ligação é muito importante
para nós", "malgré tout".
Brasileiro achava que falava castelhano, até acontecer aquele discurso
pronunciado na língua de Cervantes,
num país hispânico, em insólita prosódia com sotaque maranhense, pelo
então presidente Sarney, para estupefação de hispânicos e lusófonos.
Por ser monoglota, o presidente
Lula está sempre à vontade, em qualquer entrevista que enfrente, nos diversos países que visita.
Fernando Henrique Cardoso, embora nascido "la bas", como eles dizem, brilhou na Assembléia Nacional
Francesa falando no idioma pátrio
deles. Mas, durante o solene discurso,
deve ter ficado com as mãos frias.
E não se diga que há compatriotas
que falam tão bem a língua dos outros
que podem debater no idioma deles
de igual para igual. Não é verdade:
quem fala como eles pensa como eles.
ROBERTO MUYLAERT, 73, é jornalista, editor e escritor.
Foi presidente da TV Cultura de São Paulo de 1986 a 1995 e
ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (governo FHC).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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