São Paulo, quinta-feira, 24 de abril de 2008

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Vantagens de um monoglota

ROBERTO MUYLAERT

Por ser monoglota, o presidente Lula está sempre à vontade, em qualquer entrevista que enfrente, nos diversos países que visita

EXISTEM PALAVRAS corriqueiras em francês que ajudam a definir o status internacional de um brasileiro, mesmo que ele não domine o idioma gaulês. Em certas camadas sociais são bem conhecidas, e quase obrigatórias, expressões como "noblesse oblige", "à propos", "faute de mieux". E não é que noutro dia o presidente Lula soltou um garboso "en passant"? Seguido por um comentário dele mesmo: "Nada mal para quem há algum tempo dizia "menas gente'".
Enquanto nos regozijamos com o seu vocabulário internacional enriquecido, devemos lembrá-lo, sem ironia, de que uma das vantagens que ele leva como presidente do Brasil é o fato de ser um monoglota convicto, que ganhou o mundo sem se preocupar em falar outro idioma. E sem complexo de inferioridade por não ser poliglota, característica que comunga com os norte-americanos.
Nesse quesito, eles são insuperáveis. Conheci um dirigente de filial de uma multinacional americana situada no Brasil que, depois de cinco anos vivendo por aqui, continuava fazendo seus discursos em inglês. O divertido é que ele fazia questão de terminar a fala com um sonoro "obrigado", pronunciado com certa dificuldade, após o que abria o sorriso da vitória, como a dizer: "Não passei incólume pelo idioma do país que me acolheu tão bem nos últimos cinco anos".
É sábio o protocolo que manda cada presidente se expressar em sua própria língua, condição de igualdade garantida pelos intérpretes, para a comunicação entre líderes de países soberanos.
Das cordas vocais de Lula saem, mundo afora, vocábulos pronunciados na nossa língua portuguesa, para que as altas patentes de governos estrangeiros comecem a se acostumar, desde já, com o som do idioma de um país que, segundo "The Economist", poderá ser uma superpotência de petróleo, assim como é gigante agrícola.
Por falar em poliglota, não há nada mais extenuante para quem tem bom domínio de um idioma estrangeiro do que entrar numa longa reunião de alto nível, no exterior, com grandes interesses em jogo, tendo de desenvolver um raciocínio complexo em outra língua, com o esforço adicional e simultâneo de encontrar as palavras exatas, no momento certo, para expor suas idéias. Em tal situação, a inteligência aparente do indivíduo baixa de 20% a 30% em relação a quem debate em seu próprio idioma.
Nesse quesito, os brasileiros são campeões do servilismo idiomático, estando sempre prontos a tentar falar a língua alheia, mesmo sem conhecê-la direito. Já vi um brasileiro na Disney (EUA) mostrando erudição à moça que recolhia seus ingressos: "Parla espanhol?".
Eu mesmo me flagrei, quando estive na China, tentando dialogar com um habitante local, amável monoglota lá da língua deles. Ele sorria e me oferecia chá o tempo todo. Colonizado, tentei me entender com ele em inglês, que se mostrou tão ineficaz, como instrumento de comunicação, como se eu tivesse usado a minha própria língua em primeiro lugar.
Tenho um tio que implica com quem conhece muitos idiomas, segundo ele, cultura de "porteiro de hotel". O que ele prestigia é o português bem falado, indignando-se com a desnecessária e deselegante sucessão de gerúndios com que somos contemplados diariamente. Em especial nos serviços de telemarketing e no atendimento das companhias telefônicas e de TV por assinatura.
Situa-se ali o ninho da serpente dos gerúndios inúteis, pronunciados pelas "gerundivas", funcionárias que atendem ao telefone dessas empresas. Durante a infindável espera para ser atendido, uma gravação assegura que "sua ligação é muito importante para nós", "malgré tout".
Brasileiro achava que falava castelhano, até acontecer aquele discurso pronunciado na língua de Cervantes, num país hispânico, em insólita prosódia com sotaque maranhense, pelo então presidente Sarney, para estupefação de hispânicos e lusófonos. Por ser monoglota, o presidente Lula está sempre à vontade, em qualquer entrevista que enfrente, nos diversos países que visita. Fernando Henrique Cardoso, embora nascido "la bas", como eles dizem, brilhou na Assembléia Nacional Francesa falando no idioma pátrio deles. Mas, durante o solene discurso, deve ter ficado com as mãos frias.
E não se diga que há compatriotas que falam tão bem a língua dos outros que podem debater no idioma deles de igual para igual. Não é verdade: quem fala como eles pensa como eles.


ROBERTO MUYLAERT, 73, é jornalista, editor e escritor. Foi presidente da TV Cultura de São Paulo de 1986 a 1995 e ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (governo FHC).

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