São Paulo, sábado, 24 de abril de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Foi positivo o desempenho de Gilmar Mendes na presidência do STF?

SIM

Ministro não se pautou por arbitrariedades

JOSÉ ROBERTO BATOCHIO

GILMAR Mendes sai da presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) com grande merecimento, mas não assaz louvado e equitativamente reconhecido.
Tivesse se pautado por arbitrariedades punitivas -que tanta popularidade têm carreado a seus fautores- e por desrespeito às garantias dos cidadãos, seria ungido com a complacência que ao rivalizar com o merecimento sempre perde para a inveja.
Mesmo vindo da carreira dos que patrocinam a persecução penal em nome do Estado e que diariamente deduzem pretensões de punir e prender, Gilmar Mendes logo se mostrou despido da vocação repressiva do Ministério Público para encarnar a figura do juiz imparcial, sobranceiro, orientado pelo compromisso com a intangibilidade da ordem constitucional e preocupado em fazer justiça: "Fiat justitia, pereat mundus" (faça-se justiça, ainda que pereça o mundo).
Em seus oito anos no Supremo Tribunal Federal, os dois últimos na presidência da corte, não se vislumbra uma só decisão que atente contra o Estado democrático de Direito e as garantias fundamentais do cidadão.
O injuriador mais talentoso e o difamador mais audaz não conseguiriam, jamais, pespegar-lhe a pecha de desrespeito às leis que bem interpreta e aplica. Ao contrário, nos atos jurisdicionais, como juiz consciente, e nos pronunciamentos públicos, como chefe de Poder, por mais veementes que tenham sido suas oportunas intervenções, foi sempre exarada a convicção de um juiz devoto à lei e mouco ao alarido da turbamulta, que Rui Barbosa chamou de "a execrável justiça das ruas".
Um episódio, em particular, atraiu contra o impecável ministro a cólera industriada: a justa concessão de medida liminar em habeas corpus, ordenando a libertação de um banqueiro às 11 horas da noite.
As decisões de Gilmar Mendes no processo foram a seguir referendadas pelo plenário do Supremo, com uma exceção que impediu a unanimidade, e sua reputação jurídica defendida, entre outras iniciativas, por um manifesto assinado por mais de 170 advogados e juristas.
A audácia inaceitável do presidente do Supremo fora cortar, com a espada da Justiça, a teia cavilosa de uma pirotecnia policial, tecida em segredo e vazada em sânscrito metafísico como Operação Satiagraha-executada, como já foi dito, por autoridades justiceiras e messiânicas que pareciam querer encarnar a taumaturgia de Antônio Conselheiro em Canudos.
O despacho do presidente do STF deferindo a provisão jurisdicional de urgência para libertar o banqueiro considerou a prisão desnecessária e sem suporte legal, como, de resto, o são a maioria das prisões que se editam sob a luz inebriante de câmeras...
A nossa época, para tomar de empréstimo a célebre expressão de Eric Hobsbawm, é uma era dos extremos.
Ao mesmo tempo em que, na política, desfrutamos de sólidas liberdades democráticas, o aparelho de Estado se inclina a recidivas autoritárias.
Repete-se, também como tragédia, uma era de arbitrariedades, prisões discricionárias, interceptações telefônicas profusas, osmóticas, sem limites, ilegais, e até mesmo inquéritos sigilosos que mais adequadamente poder-se-iam denominar autos de fé.
Se, na ditadura militar, vigoravam decretos secretos, hoje o sistema judiciário é profanado por feitos criminais clandestinos. O indiciado -em seguida réu- lê nos jornais, vazadas por autoridades, as acusações mais infamantes, mas a seus advogados é vedado o acesso aos autos.
Até instituições de libertárias tradições, com quadros diretivos contaminados pelas "vozes da rua", pedem prisão preventiva de investigados que nem sequer sabem do que estão sendo acusados. O ministro Gilmar Mendes presidiu o Supremo com o lustro de verdadeiro chefe de Poder da República, altivo e independente.
Serviu ao direito acima de tudo e não se deixou seduzir pela instrumentalização da jurisdição, baseada na patranha de que justiça é a da turba, passional e volúvel. Tampouco pelo discurso fácil de que, nos pretórios, a vontade da lei deve ser "flexibilizada" para realizar a vontade popular.
Essa tarefa é dos legisladores, não dos juízes.


JOSÉ ROBERTO BATOCHIO, 66, advogado, foi presidente do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil, de 1993 a 1995) e deputado federal pelo PDT (1998-2002).

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