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Vida sintética
Equipe dos EUA enxerta genoma artificial em bactéria, abre novo capítulo da engenharia genética e suscita temor exagerado
A biologia molecular deu mais
um passo extraordinário na última semana ao produzir o que vem
sendo chamado de primeira célula sintética.
Há algum exagero na designação. A base do artefato biotecnológico foi um organismo natural, espécime da bactéria Mycoplasma
mycoides. Dela se retiraram todos
os genes, substituídos por uma
versão reescrita de seu único cromossomo -a estrutura de DNA
que contém o genoma.
Mal comparando, é como se um
computador usado recebesse novo disco rígido. Os programas contidos no dispositivo de armazenamento são imprescindíveis para o
aparelho funcionar, mas também
incapazes de produzir qualquer
resultado sem o concurso da unidade central de processamento
(CPU), do monitor, do teclado etc.
A célula assim reconstruída ganhou um genoma postiço. A coleção de genes projetada em computador pela equipe de Craig Venter, depois "impressa" na forma
de DNA e enxertada no organismo
unicelular, não encontra equivalente na natureza.
Vários genes foram deletados, e
outros, inseridos como "marca
d'água", para diferenciá-los de similares existentes na "vida real".
Entre os excluídos estavam genes
ligados à virulência, expediente
para tornar a bactéria artificial
inofensiva.
Por ora o feito representa pouco
mais que uma prova de princípio:
biólogos moleculares demonstraram-se capazes de manipular um
conjunto coerente e funcional de
centenas de genes.
Trata-se de uma nova etapa da
engenharia genética, que até o
presente lidava só com uma dezena de genes em cada organismo
alterado. Mas a bactéria "sintética" não foi projetada para desempenhar funções específicas.
De imediato, o experimento
contribui para compreender o genoma e seu papel no controle da
vida celular. A médio prazo, o programa de pesquisa do Instituto J.
Craig Venter quer criar microrganismos úteis e patenteáveis.
Seriam, por exemplo, bactérias
capazes de produzir combustíveis
limpos, como hidrogênio. Ou, então, de metabolizar e extrair poluentes da natureza. São áreas de
enorme potencial tecnológico e
econômico, que podem trazer
grande benefício para a humanidade e o planeta.
Entende-se que a capacidade de
fabricar organismos suscite incômodo e apreensão em algumas
pessoas e entidades. É comum ouvir restrições à perspectiva de
"brincar de Deus", como se uma
tragédia fáustica se ocultasse detrás de toda expectativa prometeica diante da ciência.
Trata-se de um dilema ultrapassado. A eventual má utilização de
resultados da ciência -basta pensar em quanto a biologia sintética
poderia contribuir para inovar armas biológicas- não deve ser prevenida por meio de limitações à liberdade de pesquisa, mas sim de
vigilância e controle social sobre
seus produtos.
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