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São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Quando os americanos eram bonzinhos

IVÁN IZQUIERDO

Claro , agora há o George W. Bush e os mais jovens não têm como se lembrar, mas já houve uma época em que os norte-americanos eram bonzinhos. Era por volta de 1945, quando terminava a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava no fim e os jornais e os noticiários do cinema nos mostravam fotos e mais fotos de alegres tropas norte-americanas liberando cidade atrás de cidade. Liberando de verdade, com genuínos sorrisos nos lábios, e ainda por cima repartindo balas entre as crianças, cigarros entre os homens e beijos entre as mulheres. O mundo inteiro dançava "boogie woogie" ou cantava ao som de Tommy Dorsey e Benny Goodman. Betty Grable, vejam só, era considerada uma beleza.
No Brasil, popularizou-se o polegar direito para cima, para dizer "OK". Foi instituído o forró, derivado das alegres festas "for all" que os benfeitores de Natal davam, abrindo as portas de sua base para o povo. Até Getúlio virou democrático e festejava-se com orgulho genuíno a participação de soldados brasileiros, ao lado de nossos amigos ianques, na derrubada dos "Estados-Novos" de além-mar. Aqueles que pouco antes foram tão alegremente imitados.
Alguns, talvez por puro espírito de porco, ousavam criticar as proibições que nos próprios Estados Unidos exerciam-se contra os negros: a de sentar na parte da frente dos ônibus ou a de usar banheiros para brancos. Sem contar, volta e meia, a Ku-Klux-Klan. Tomava-se tudo isso como uma extravagância, em todo o caso, menos grave que o racismo dos fornos que se praticava na Europa nazista. Que, é bom lembrar, não se limitava à Alemanha e à Itália, mas era praticado com igual entusiasmo na benemérita França, na romântica Hungria, na alegre Áustria, na sacrificada Polônia.
E também é bom recordar que a existência dos fornos era conhecida por Churchill e Roosevelt em detalhe anos antes que o resto do mundo viesse realmente a saber deles. Ou o fato de que a maioria dos europeus certamente não fazia parte da Resistência.


Os que erramos certamente fomos nós, os atrasados de então e de sempre, os latinos de cabeça quente


Ah, sim, mas era boa essa época. Graças aos simpáticos americanos, o mundo estava ficando um lugar melhor. E graças também aos heróicos ingleses, aos valorosos seguidores de De Gaulle, aos incríveis aviadores poloneses e, por que não, aos sofridos russos, galvanizados pelo bom Tio José, o homem de aço, o saudoso Stálin, amigo fiel e valente de Roosevelt e Churchill. Sentia-se o despertar universal rumo à liberdade, igualdade e fraternidade; finalmente, o tripé da sacrossanta Revolução Francesa de 180 anos atrás, sem a guilhotina dessa vez.
Jogaram-se bombas nucleares no Japão, demoliu-se Dresden em nome da união entre os povos. Roosevelt e Churchill cederam de bom grado o Leste Europeu a Stálin, em prêmio à sua valiosa colaboração à causa da democracia. Dos milhões que o sorridente Tio José mandou matar, não se falava então. Nem que o general Patton, o maior dos militares bonzinhos, já grunhia que "lutamos contra o inimigo errado".
Sim, era boa aquela época, quando os americanos eram bonzinhos.
Era também a época em que cigarro não causava câncer, em que os homens não surravam as mulheres, em que o colesterol não existia, a vida sedentária era própria dos sábios, as colônias francesas da Ásia e as britânicas da Ásia e da África eram civilizadíssimas, os muçulmanos eram simplesmente pitorescos; era a época em que... Entre outras coisas, "o negro sabia qual era o seu lugar". No alegre Alabama e no generoso Brasil, onde jamais houve racismo. Veja, senão, a que alturas escalou o "nego Fortunato".
Era a época em que a função dos centro-americanos era só colher bananas e organizar prostíbulos. Ainda que, volta e meia, tivessem que vir os "marines" para pôr as coisas no lugar. Aos Estados Unidos do Brasil não precisavam vir, porque aqui já estavam. E, convenhamos, americano também tem que ter seus dias de sadio lazer. A moral das tropas tem de se manter alta; liberar povos cansa.
Que será que aconteceu depois? Chiclete demais? Faltaram prostíbulos? Onde foi que erramos? Porque os que erramos certamente fomos nós, os atrasados de então e de sempre, os latinos de cabeça quente, os africanos invariavelmente burros, os asiáticos que sempre foram pérfidos. Porque os civilizados, os "G7" de sempre, nunca erram. Prova é que seus conselhos sempre sábios, transmitidos a nós através do severo FMI ou da justiceira OMC, se sempre deram errado, nunca foi por culpa deles, mas pela nossa.
Em todo o caso, seria bom que, antes de confessar tanta mea culpa como fez agora em Evian, o Lula relembrasse o hoje sombrio e outrora jocoso Menem, aquele que na década de 90 também foi o "menino-dos-olhos" dos Estados Unidos, do G7, do FMI e da OMC.
Ah, a fúria dos recém-conversos! Ah, a contagiante elegância de Evian!

Iván Izquierdo, 65, neurocientista e escritor, é professor convidado do Departamento de Bioquímica da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).


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