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São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Cultura bandida

O domínio da violência -endêmico nas grandes cidades, crescente nas de porte médio- anda onipresente também na arte e nos espetáculos. Da música dos "rappers" a filmes como "Carandiru" ou "Cidade de Deus", da "nova" literatura marginal ao dia-a-dia da TV, a criminalidade violenta é cada vez mais o modelo narrativo, o padrão estético e até o rumo moral.
Nada mais lógico, pois a cultura reflete num plano imaginário as vivências que consomem a vida real. E nada mais antigo. Foram os românticos quem inventou certa figura do fora-da-lei como herói existencial, fixando um paradigma que se renova e repete desde então na literatura de engajamento social, no cinema "noir", no romance policial americano.
O que mudou é que todo esse tratamento, mesmo quando embaralhava as posições de "mocinho" e "bandido", nunca deixava de manter rígida a distinção habitual entre bem e mal. A nova cultura delinquencial também a respeita, mas inverte os termos da equação para colocar a ordem e a própria moralidade vigentes no banco dos réus. Assim como as chamadas ocupações de terras, essa cultura invade a linguagem dos adolescentes, os padrões da moda, o cotidiano da classe média sem causar alarme ou escândalo. Não se trata de protestar, mas de tentar entender os mecanismos pelos quais tudo aquilo que nossa sociedade diz abominar é glamourizado no plano da representação simbólica.
Se a arte penitenciária, na qual o presídio aparece como ateliê social de uma estética da violência, ocupa lugar proeminente em todo o mundo ocidental, ela encontrou terreno fértil no ambiente brasileiro, todo ele formado no desrespeito à lei e na valorização da figura ambivalente do malandro, nem senhor nem escravo, vivendo de golpes e expedientes.
Na formação dessa mentalidade atual, acrescente-se o efeito combinado da doutrinação sociológica com o catolicismo renitente, a primeira mostrando que os criminosos são apenas vítimas de estruturas sociais injustas, o segundo garantindo que o sentimento de culpa seja a compensação lamentosa para a violência efetivamente exercida contra os miseráveis.
Se o miserável faz jus a todos os direitos (que lhe são negados na vida real), o herói-bandido dos filmes e da música de periferia se legitima como aquele protagonista do conto de Rubem Fonseca que decidiu resgatar a dívida pelas próprias mãos. Não é difícil entender o porquê de a cultura marginal exercer seu fascínio sobretudo entre os jovens.
Uma revolução hormonal está sempre em curso ali, mas também a pressa de se fazerem adultos, de ingressar com tudo no consumo patológico do shopping center, de ter seus desejos atendidos já -tudo isso os aproxima do assaltante edulcorado dos filmes. Com a diferença de que o bandido, sabendo que vai morrer logo, superou por isso mesmo o medo da morte.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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