São Paulo, terça-feira, 24 de agosto de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

50 anos

RIO DE JANEIRO - Rádio e TV ligados, não senti a noite passar. A crise política fervia, dizia-se que o presidente iria renunciar, forçado pelos militares que o responsabilizavam por um atentado em que morrera um major da Aeronáutica. Nas primeiras horas da madrugada, um aparente alívio na tensão. O ministério divulgara uma nota em que o presidente pediria licença de seu mandato desde que fossem mantidas a ordem e as instituições.
As atenções saíram do Catete e foram para Copacabana, onde residia o vice-presidente Café Filho, que deveria assumir nas primeiras horas da manhã. Militares, políticos e a imprensa correram para o sol que ameaçava nascer.
Um repórter radiofônico, dos últimos a deixar o Catete, entrevistou um mordomo do palácio que vira Getúlio Vargas já vestido à gaúcha, fazendo as malas, pronto para voltar a São Borja.
O natural seria desligar rádio e TV, tentar dormir algumas horas. Mas os ânimos estavam inflamados na casa de Café Filho, o champanha rolava, políticos e militares ocupavam o microfone, declaravam a nação redimida, a pátria salva, alguns nomes eram lembrados para o novo ministério que se empossaria à tarde.
Um deputado da UDN falava em nova era quando um técnico pediu que o som fosse devolvido ao estúdio. O deputado continuou falando até que o som foi cortado. Entrou a voz de um locutor profissional pedindo atenção, muita atenção: "O senhor Getúlio Vargas acaba de suicidar-se em seu quarto no Palácio do Catete". O locutor não disse "o presidente Getúlio Vargas". Disse "o senhor Getúlio Vargas".
Eu morava num quarto andar, mas foi como se sentisse o chão estremecer, não o chão do meu apartamento, mas o chão do mundo. Para a minha geração, até aquele momento, gostássemos do ex-ditador ou o detestássemos, Vargas era uma coisa doméstica, pessoal, presente em nosso cotidiano, em nosso amor ou em nossa ira. Sua morte era um absurdo do tamanho de nosso pasmo.


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