São Paulo, terça-feira, 24 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A canetada e a tesourada

MAURÍCIO TUFFANI

Há poucos dias, o jurista Miguel Reale Jr. trouxe a este espaço uma importante contribuição ao debate sobre o projeto de lei de criação do CFJ (Conselho Federal de Jornalismo), em seu artigo "Liberdade e disciplina" (17/ 8). Apesar de se declarar favorável à iniciativa, o ilustre professor fez objeções relevantes a ela, que foi concebida originalmente pela Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas Profissionais). Duas dessas objeções dizem respeito a duas alterações significativas feitas por essa entidade em parceria com o governo quando da elaboração dessa proposta, ainda na fase de anteprojeto.
Começo pela última objeção de Reale, que para ele, com razão, "causa estranheza". Ela se refere à "canetada" que o anteprojeto sofreu na Casa Civil da Presidência da República, antes de ser enviado ao Congresso Nacional, como demonstrei no site "Observatório da Imprensa" (10/08). Entre as atribuições previstas para o CFJ no anteprojeto consta a de "disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista". A Casa Civil acrescentou a esse trecho algumas palavras, mudando-o para "disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo".


É mistificador o argumento de que a proposta do CFJ é fruto de ampla discussão entre os jornalistas


Essas modificações abririam espaço para o CFJ ser criado com atribuições relativas ao controle da profissão de jornalista e das atividades dos veículos de comunicação, na medida em que o dispositivo prevê também a competência do novo órgão para decidir sobre tudo o que não estiver previsto em lei, como bem ressaltou Reale. Vale ressaltar o troco que, ironicamente, essa "canetada" ainda pode levar nas discussões do Legislativo. Uma vez que a proposta passou a prever explicitamente também o controle da atividade de jornalismo, os legisladores poderão entender que os proprietários de veículos de comunicação também devem ter assento no CFJ e nos seus conselhos estaduais.
Às perguntas da imprensa sobre as razões dessas modificações, o governo só deu respostas evasivas. Entre elas, a de que no Congresso o texto estará aberto à discussão dos jornalistas e de toda a sociedade. Essa resposta, surpreendentemente, passou a ser dada também pela diretoria da Fenaj. No dia em que o texto foi enviado ao Legislativo (4/8) -que, por coincidência, acabou acontecendo durante o 31º Congresso Nacional dos Jornalistas, em João Pessoa (PB)-, dirigentes dessa entidade repetiram e registraram em seus websites, em clima de vitória, o que já vinham dizendo: "Precisamos de um movimento nacional de todos os jornalistas a fim de pressionar os parlamentares para que o projeto possa ser rapidamente aprovado, sem emendas".
Outra objeção relevante de Reale se refere ao fato de que a iniciativa da Fenaj secundada pelo governo não inclui um código de ética. No entanto o texto aprovado em outubro do ano passado em Florianópolis, em sessão plenária do 30º Congresso Nacional de Jornalistas, tinha como anexo os 17 artigos do Código de Ética do Jornalista. Portanto nem só da "canetada" o projeto de lei foi fruto, mas também de uma "tesourada" naquilo que foi votado em plenário.
É, portanto, mistificador o argumento de que a proposta do CFJ é fruto de ampla discussão entre os jornalistas. Isso não seria verdadeiro mesmo que desconsiderássemos o fato de que as diretorias da entidade têm sido eleitas em processos com inexpressiva participação de profissionais.
Diferentemente das leis de outros países em que a profissão é regulamentada, como França, Itália, Bélgica e outros, o projeto de lei do CFJ foge ao tema da definição das condições de acesso à carreira. E isso é estranho em um país como o nosso, em que as leis são muito detalhistas. No entanto esse tema havia sido considerado na primeira proposta de anteprojeto, de setembro de 2002, no 29º Congresso Nacional de Jornalismo, mas a entidade deliberou, no evento de 2003, pela sua retirada do texto.
Com essa outra "tesourada", a Fenaj relegou a definição das condições para ingresso na profissão a um incômodo esqueleto em seu armário: o infame decreto-lei 972, de 1969, que não foi votado por nenhum parlamentar nem sancionado por nenhum presidente, mas somente outorgado pelos três ministros militares que governaram o país com o Congresso fechado. E esse dispositivo estabelece a obrigatoriedade da formação superior em jornalismo para o exercício da profissão -que temporariamente está suspensa pela Justiça-, o que não ocorre nos três países acima citados nem na Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Estados Unidos, Finlândia, Grécia, Holanda, Japão, Suécia, Suíça e outros.
Apesar de o tema do acesso à profissão de jornalista ter sido excluído da proposta de criação do CFJ, ele permanece implicitamente em outro projeto de lei, que tem caminhado a passos largos por diversas comissões do Legislativo, curiosamente quase "sem emendas", como antes propunham nossos sindicalistas. Trata-se do projeto de lei 708, de 2003, de autoria do deputado Pastor Amarildo (PSB-TO), que tem como relator o deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), que atualiza a definição das áreas de atuação dos jornalistas e suas funções no entulho preservado pelo decreto-lei da Junta Militar. Infelizmente, temas como esse têm sido ofuscados na atual agitação da mídia em torno do projeto do CFJ.

Maurício Tuffani, 47, é jornalista especializado em ciência e meio ambiente. Foi editor-chefe da revista "Galileu" (editora Globo) e editor de Ciência da Folha.


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