São Paulo, quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Fora da política não há salvação

FÁBIO KONDER COMPARATO

NESTE PERÍODO de crescente náusea eleitoral, cometeríamos um erro funesto se virássemos as costas à política para nos dedicarmos unicamente aos nossos afazeres particulares. Esse absenteísmo é a pior forma de fazer política, pois representa o apoio incondicional ao statu quo oligárquico. Mas como vencer o desalento que nos invade? Creio que uma reflexão histórica nos ajudaria a entender a atual situação.


Cometeríamos um erro funesto se virássemos as costas à política para nos dedicarmos unicamente aos nossos afazeres particulares


O capitalismo industrial, que Marx conheceu no século 19, engendrou a organização da classe operária em sindicatos e suscitou, por via de conseqüência, a criação dos partidos políticos modernos, fundados na oposição dos interesses de classe. Na lógica da atividade industrial, o lucro das empresas é ligado à produção de bens, e esta, nos primeiros tempos, dependia substancialmente do trabalho assalariado. Com o avanço da técnica e, sobretudo, com a maciça aplicação da eletrônica ao processo de produção, o principal fator produtivo passou, de longe, a ser a tecnologia, tornando-se a contribuição do trabalho assalariado cada vez menor.
O advento do capitalismo financeiro, fundado na usura ou em operações de pura especulação, acentuou de modo drástico essa tendência ao reduzir substancialmente as atividades industriais, não só no mundo desenvolvido mas também, precocemente, em grandes países subdesenvolvidos, como o nosso. As únicas exceções subsistentes (por quanto tempo?) estão na Ásia. Escusado dizer que o resultado imediato da desindustrialização é o desemprego em massa, cujos índices médios globais crescem sem cessar.
Só em nosso país, há, atualmente, 8 milhões de trabalhadores sem emprego. Exatamente por isso, hoje, o melhor recurso para ganhar eleições é a política assistencialista. Aí está a razão do enfraquecimento dos sindicatos e da homogeneização dos partidos políticos no mundo todo, com a eliminação dos tradicionais contrastes que os opunham na luta pelo poder. As tentativas de voltar a dar ânimo à vida política com a criação de partidos desligados do mundo do trabalho, como os verdes, fracassaram rotundamente. A política, no dizer de um grande sociólogo brasileiro, ou melhor, essa forma decadente de fazer política, digo eu, se tornou de fato irrelevante.
Não esqueçamos que, durante o império, quando a escravidão antes aproximava do que afastava o partido conservador do partido liberal (daí o célebre dito: "Não há nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder"), tivemos a mesma sensação de desimportância da política.
Hoje, com a marginalização dos trabalhadores, os partidos não mais se distinguem por nenhuma prática conseqüente, havendo todos abandonado sua original fidelidade programática, sob a cômoda invocação do fim das ideologias. Voltamos à desalentadora mesmice do passado. Não há nada mais semelhante à coligação PSDB-PFL no poder do que o PT no governo. Que fazer?
É claro que se deve procurar o aperfeiçoamento constante do processo eleitoral. Mas a verdadeira solução se encontra mais além.
É preciso, de um lado, educar o povo brasileiro para lhe dar consciência do papel protagonista que ele deve desempenhar na vida política. Ou seja, criar costumes democráticos em lugar da tradicional passividade diante dos oligarcas. A função eminente dos novos partidos já não será, então, a luta para alcançar o poder, mas, sim, o trabalho de educar e organizar o povo para que ele se ponha de pé e passe a exercer diretamente as funções que ninguém tem o direito de assumir em seu nome: a de decidir o seu destino e o futuro do país.
De outro lado, urge desbloquear e alargar, na ordem jurídica, o uso dos instrumentos de democracia direta e participativa -o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular, os orçamentos participativos-, sem os quais não existe verdadeira soberania popular.
É indispensável, ainda, dar eficiência operacional à democracia, com a criação de um órgão de poder de planejamento autônomo, composto de representantes dos setores mais importantes da sociedade civil.
No elogio que fez da democracia ateniense durante a Guerra do Peloponeso, Péricles pôde dizer com orgulho: "Nós somos o único povo a pensar que um homem alheio à vida política deve ser considerado não como um cidadão tranqüilo, mas como um cidadão inútil". Seria uma desgraça nacional se a maioria do nosso povo aceitasse a sua própria inutilidade.
FÁBIO KONDER COMPARATO , 69, advogado, doutor pela Universidade de Paris (França) e doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra (Portugal), é professor titular da Faculdade de Direito da USP. É autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno".


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Augusto de Franco: A fórmula antidemocrática de Lula

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.