São Paulo, sábado, 24 de setembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A exposição da cruz em prédios públicos fere a separação entre igreja e Estado?

NÃO

A cruz e a Justiça

JOSÉ RENATO NALINI

A proposta de retirada dos crucifixos dos tribunais é coisa antiga em outros países. A França já passou por isso. Demorou a chegar ao Brasil. Porém é de indagar: justifica-se?
A separação entre igreja e Estado não significa o banimento de toda a simbologia que integra o caráter brasileiro. A Constituição veda ao poder público estabelecer cultos religiosos e igrejas ou subvencioná-los. Mas também proíbe embaraçar-lhes o funcionamento e autoriza a colaboração entre igreja e Estado com vistas ao interesse público.
À exceção das constituições de 1891 e 1937, todas as demais abrigam o elemento teocrático. Invocam a proteção de Deus no preâmbulo do pacto. E isso tem uma razão de ser. A nação brasileira nasceu sob a invocação da cruz. Já foi chamada Terra de Santa Cruz.
O primeiro ato solene a que o solo recém-descoberto assistiu foi a celebração da missa. Ninguém recusa a participação que a igreja teve na evangelização e na educação dos primeiros brasileiros. Os jesuítas e outras ordens religiosas trouxeram para esta parte do planeta uma fé que passou a integrar o ethos nacional. A cristianização foi preocupação permanente do colonizador e é constatável a profunda inserção de nossa cultura na chamada civilização cristã.
O Brasil não pode renegar a sua condição de país de maioria católica. E católico, até na acepção semântica, é o potencialmente universal, aberto a todos.
Esse ethos católico continua presente sob feição mais ética do que confessional. Ele significaria hoje a boa inclinação, o bom caráter, a abertura a tudo e a todos, especialmente ao amor. Exteriorizar-se-ia pela capacidade de tolerância, compreensão, comunicação e diálogo. Ser católico é ser receptivo. É vivenciar a dignidade humana e reconhecer no próximo e em qualquer pessoa, um semelhante, igualmente digno de respeito e apreço.
Nada mais representativo do que o amor desinteressado às criaturas do que a imagem de Jesus Cristo. Entregou-se para a salvação de toda a humanidade, não apenas dos católicos. Eles nem sequer existiam quando Ele foi crucificado. Não é necessário ser crente para aceitar o heroísmo do Cristo e para nele enxergar um idealista. Virtudes desvinculadas de confissão religiosa refletem-se em sua existência histórica. Coragem, tolerância, amor desinteressado, sacrifício, doação, devotamento, desapego à matéria, oferta da própria vida não são atributos por todos prestigiados?
A presença física do Cristo crucificado nos ambientes da Justiça em nada prejudicou a realização do justo concreto. Ao contrário, confere uma aura de respeitabilidade de que a Justiça não pode prescindir. O universo do Judiciário é daqueles em que a forma é essencial. Não o formalismo estéril, mas a observância de ritos que passam a integrar a substância dessa missão terrível que é julgar o semelhante. O símbolo da cruz é advertência ao operador do direito -principalmente o juiz- de que fazer justiça é algo muito sério. Chega a ser trágico, pois não há conflito que não envolva um drama, um sofrimento.
A cruz é lição de humildade. Nada mais distante da tendência aos egos inflados do que o abandono e o sofrimento da cruz. Se ela servir para trazer aos julgadores um laivo de tais sentimentos, já terá convertido a Justiça em algo mais sensível e humano.
A cruz é esperança. Foi mediante o seu sacrifício que se alcançou a ressurreição e a promessa de vida transcendente para a humanidade. Para o desesperançado que vê na justiça humana o refúgio para a incompreensão, a iniqüidade, os direitos vulnerados, ela pode constituir alento. Até para lembrar que os homens tentam fazer o melhor, mas o justo absoluto não está contido em sua capacidade. Isso é missão divina.
A cruz é misericórdia. E justiça desprovida de misericórdia pode representar suma injustiça. Antes de Cristo, os romanos já sabiam disso. O excessivo direito está separado por uma faixa muito tênue da iniqüidade. A cruz serve de compromisso a quem assume o encargo de produzir a justiça dos homens.
Qual o malefício que a presença do crucifixo oferece à realização da justiça? As demais confissões religiosas não se sentem agredidas. Em todas as religiões, a divindade é a protetora natural da moral e do direito. Deus é o Deus da justiça.
Um símbolo de transcendência também contribui para o desenvolvimento de uma desejável moral civil. Quaisquer que sejam as crenças, a religião ou a falta dela, as pessoas de bem precisam de um consenso mínimo a respeito do que vale a pena em termos de conduta. A cruz pode ser alavanca para a constituição de si mesmo como sujeito moral.
Até mesmo em termos estéticos, a arte sacra já ofereceu ao mundo obras-primas que reabilitam a crença na predestinação humana. O que se ganhará com a exclusão do crucifixo das salas de audiências? É nisso que residem as deficiências do Judiciário?


José Renato Nalini, 59, secretário-geral da Academia Paulista de Letras, é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.


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