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TENDÊNCIAS/DEBATES
A exposição da cruz em prédios públicos fere a separação entre igreja e Estado?
NÃO
A cruz e a Justiça
JOSÉ RENATO NALINI
A proposta de retirada dos crucifixos dos tribunais é coisa antiga em
outros países. A França já passou por isso. Demorou a chegar ao Brasil. Porém
é de indagar: justifica-se?
A separação entre igreja e Estado não
significa o banimento de toda a simbologia que integra o caráter brasileiro. A
Constituição veda ao poder público estabelecer cultos religiosos e igrejas ou
subvencioná-los. Mas também proíbe
embaraçar-lhes o funcionamento e autoriza a colaboração entre igreja e Estado com vistas ao interesse público.
À exceção das constituições de 1891 e
1937, todas as demais abrigam o elemento teocrático. Invocam a proteção
de Deus no preâmbulo do pacto. E isso
tem uma razão de ser. A nação brasileira nasceu sob a invocação da cruz. Já foi
chamada Terra de Santa Cruz.
O primeiro ato solene a que o solo recém-descoberto assistiu foi a celebração
da missa. Ninguém recusa a participação que a igreja teve na evangelização e
na educação dos primeiros brasileiros.
Os jesuítas e outras ordens religiosas
trouxeram para esta parte do planeta
uma fé que passou a integrar o ethos nacional. A cristianização foi preocupação
permanente do colonizador e é constatável a profunda inserção de nossa cultura na chamada civilização cristã.
O Brasil não pode renegar a sua condição de país de maioria católica. E católico, até na acepção semântica, é o potencialmente universal, aberto a todos.
Esse ethos católico continua presente
sob feição mais ética do que confessional. Ele significaria hoje a boa inclinação, o bom caráter, a abertura a tudo e a
todos, especialmente ao amor. Exteriorizar-se-ia pela capacidade de tolerância, compreensão, comunicação e diálogo. Ser católico é ser receptivo. É vivenciar a dignidade humana e reconhecer
no próximo e em qualquer pessoa, um
semelhante, igualmente digno de respeito e apreço.
Nada mais representativo do que o
amor desinteressado às criaturas do que
a imagem de Jesus Cristo. Entregou-se
para a salvação de toda a humanidade,
não apenas dos católicos. Eles nem sequer existiam quando Ele foi crucificado. Não é necessário ser crente para
aceitar o heroísmo do Cristo e para nele
enxergar um idealista. Virtudes desvinculadas de confissão religiosa refletem-se em sua existência histórica. Coragem,
tolerância, amor desinteressado, sacrifício, doação, devotamento, desapego à
matéria, oferta da própria vida não são
atributos por todos prestigiados?
A presença física do Cristo crucificado
nos ambientes da Justiça em nada prejudicou a realização do justo concreto.
Ao contrário, confere uma aura de respeitabilidade de que a Justiça não pode
prescindir. O universo do Judiciário é
daqueles em que a forma é essencial.
Não o formalismo estéril, mas a observância de ritos que passam a integrar a
substância dessa missão terrível que é
julgar o semelhante. O símbolo da cruz
é advertência ao operador do direito
-principalmente o juiz- de que fazer
justiça é algo muito sério. Chega a ser
trágico, pois não há conflito que não envolva um drama, um sofrimento.
A cruz é lição de humildade. Nada
mais distante da tendência aos egos inflados do que o abandono e o sofrimento da cruz. Se ela servir para trazer aos
julgadores um laivo de tais sentimentos,
já terá convertido a Justiça em algo mais
sensível e humano.
A cruz é esperança. Foi mediante o
seu sacrifício que se alcançou a ressurreição e a promessa de vida transcendente para a humanidade. Para o desesperançado que vê na justiça humana o
refúgio para a incompreensão, a iniqüidade, os direitos vulnerados, ela pode
constituir alento. Até para lembrar que
os homens tentam fazer o melhor, mas
o justo absoluto não está contido em
sua capacidade. Isso é missão divina.
A cruz é misericórdia. E justiça desprovida de misericórdia pode representar suma injustiça. Antes de Cristo, os
romanos já sabiam disso. O excessivo
direito está separado por uma faixa
muito tênue da iniqüidade. A cruz serve
de compromisso a quem assume o encargo de produzir a justiça dos homens.
Qual o malefício que a presença do
crucifixo oferece à realização da justiça?
As demais confissões religiosas não se
sentem agredidas. Em todas as religiões,
a divindade é a protetora natural da moral e do direito. Deus é o Deus da justiça.
Um símbolo de transcendência também contribui para o desenvolvimento
de uma desejável moral civil. Quaisquer
que sejam as crenças, a religião ou a falta
dela, as pessoas de bem precisam de um
consenso mínimo a respeito do que vale
a pena em termos de conduta. A cruz
pode ser alavanca para a constituição de
si mesmo como sujeito moral.
Até mesmo em termos estéticos, a arte
sacra já ofereceu ao mundo obras-primas que reabilitam a crença na predestinação humana. O que se ganhará com
a exclusão do crucifixo das salas de audiências? É nisso que residem as deficiências do Judiciário?
José Renato Nalini, 59, secretário-geral da Academia Paulista de Letras, é desembargador do
Tribunal de Justiça de São Paulo.
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