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São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Me engana que eu gosto

ROBERTO LUIS TROSTER

Há uma discussão, entre economistas, sobre a metodologia do cálculo do déficit fiscal. O foco da polêmica é se os investimentos das empresas estatais devem, ou não, ser incluídos na computação dos gastos públicos.
Argumenta-se que essas empresas têm características especiais, sua atividade principal não é governamental, sua administração é profissionalizada, são abertas, prestam contas detalhadas de sua atuação e têm uma preocupação com eficiência; dessa forma, seus investimentos não deveriam ser computados como gastos nos cálculos do déficit público.
Se aceito esse entendimento, o governo poderia cumprir suas metas fiscais com facilidade, teria mais flexibilidade orçamentária, gastaria mais e teria espaço para investir recursos em infra-estrutura usando o endividamento das estatais. O país viraria um canteiro de grandes obras, isso induziria uma maior atividade produtiva, mais investimentos por parte do setor privado e, assim, voltaríamos a crescer.
É um raciocínio atraente e sedutor, mas perigoso, muito perigoso. Se prevalecer, o governo atuará numa direção diametralmente oposta à boa política macroeconômica, provocando consequências nefastas para nossa economia. Hoje o endividamento do setor público é alto, mais de dois terços do crédito disponível são do governo. Aumentá-lo, através de um estratagema retórico ou contábil, significa agravar os principais problemas da economia brasileira -juros reais altos, carga tributária elevada e escassez de crédito para o setor privado.
Independentemente da classificação, uma dívida maior das estatais implica canalizar mais poupança do setor privado para o governo, o que é algo a ser evitado.
O custo do crédito público é crescente, ou seja, a cada aumento de endividamento, os juros são mais altos em razão da maior percepção de risco; como o custo do dinheiro do governo é a base para todos os demais créditos, toda a sociedade pagará juros mais altos. Com isso, o custo de cada real emprestado aumenta, quando a dívida do governo torna-se excessiva. Nesse cenário, uma parcela expressiva de recursos é transferida de devedores a detentores de riqueza, há menos incentivos a investir e nossas possibilidades de crescer são cerceadas. Atualmente, a rolagem da dívida do governo impõe altos custos à sociedade, por meio de juros básicos elevados e uma arrecadação tributária que consome mais de um terço do nosso PIB, não sendo oportuno agravar esse quadro.


O controle do déficit fiscal não deve ser visto como uma meta indesejada com critérios flexíveis e discutíveis

A história econômica brasileira é rica em exemplos de cenários análogos, em que a prodigalidade dos governos limitou o nosso crescimento. Mudam os atores e o tempo, mas a trama é idêntica: há um aumento de gastos, num primeiro momento, que incentiva uma reativação localizada da atividade econômica e uma sensação de um Estado forte; todavia, num segundo momento, a dívida cresce demasiadamente, os juros reais sobem, a reativação produtiva é abortada e o país entra em crise.
Todas as tentativas anteriores de retomar o crescimento fracassaram por descontroles fiscais. Planos econômicos, inflação, desvalorizações, arrochos salariais e recessões são todos sintomas indesejados da mesma enfermidade: endividamentos irresponsáveis. Não podemos repetir erros do passado.
Temos a oportunidade de crescer de forma sustentada -para isso é necessário baixar o piso das taxas de juros reais. Atualmente, as taxas de juros básicas estão em 19% ao ano e caindo; devemos terminar este ano com juros básicos de 17%; o ano vindouro, com 14%. Com isso, o crédito ao setor privado deve aumentar 15% em 2004 e ser o propulsor da economia brasileira, que crescerá 3,5%. É um bom desempenho se comparado com o dos anos anteriores, mas é pouco quando contrastado com o nosso potencial, que nos permite ambicionar mais, muito mais.
Há uma visão de que existe um patamar dos juros reais da ordem de 10% no Brasil. Isso é corroborado com a experiência das últimas décadas. Esse piso seria um limitador de nosso crescimento, entretanto não é resultado de alguma condição estrutural da nossa economia, mas sim do fato de o Estado brasileiro ter sido um devedor crônico. Em algumas ocasiões no passado, até usou de confiscos e moratórias para administrar seus passivos. Um passado que não devemos perpetuar. É premente uma contenção no endividamento público.
O controle do déficit fiscal não deve ser visto como uma meta indesejada com critérios flexíveis e discutíveis, mas como um compromisso imutável com nosso desenvolvimento. Um aperto fiscal coloca a dívida pública num círculo virtuoso, com risco declinante, e abre espaço para baixar o patamar de juros reais e expandir o crédito ao setor privado. É fato: necessitamos de um Estado forte para crescer, mas um Estado forte não é um Estado endividado e esbanjador. Argumentos contrários enganam.

Roberto Luis Troster, 53, professor titular do Departamento de Economia da PUC-SP, autor de "Economia do Setor Público" (Saraiva), é o economista-chefe da Febraban.


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