São Paulo, sábado, 24 de novembro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A maconha deve ser descriminalizada?

SIM

A velha discussão sobre o crime sem vítima

FERNANDO GABEIRA

Para responder com seriedade à questão da descriminalização, alguns países, como os EUA e a França, criaram comissões parlamentares com amplos poderes de investigação. No caso norte-americano, a comissão presidida pelo senador Raymond Shafer, disponibilizou uma verba adicional de US$ 2 milhões para realizar pesquisas próprias destinadas a responder a perguntas que o trabalho científico, até aquele momento, ainda não tinha focalizado.
Tanto a resposta francesa quanto a norte-americana, ao cabo de extensas discussões, convergem para admitir que a maconha deveria ser legalizada, uma vez que não representa mais perigo para a saúde humana do que algumas outras drogas já existentes no livre mercado. Outros caminhos trilhou a polícia britânica para recomendar ao governo Blair uma política mais liberal em relação à maconha. Pesquisas internas revelaram que um flagrante e todos os trâmites legais indispensáveis à prisão de um fumante de maconha tomam cinco horas de trabalho, um tempo precioso demais a ser tomado da polícia.
Um elementar senso de ridículo levou o governo britânico a reformular a sua política, criando uma área experimental no distrito de Lambeth, em Londres, onde está o bairro de Brixton, com grande presença de estrangeiros, inclusive jamaicanos. Nessa área, fumar é permitido, pois a polícia tem mais o que fazer além de prender usuários de maconha. A mesma reflexão da Polícia Montada do Canadá -uma análise de custos e benefícios da repressão ao uso da maconha- a levou a recomendar ao governo um processo de flexibilização que a liberasse dessas tarefas mesquinhas e contraproducentes.
Mesmo no Brasil, há cerca de dois meses, a Academia de Polícia do Rio deu um passo adiante, abrindo um debate sobre o tema, presidido pelo delegado Álvaro Dias. Ali foi possível que alguns dos argumentos acima fossem expostos democraticamente para uma platéia que começa a questionar os fundamentos da política brasileira sobre a maconha. No Brasil, a violência ligada ao comércio clandestino é mais intensa, sendo considerada um fator determinante da insegurança das grandes cidades.
A União Européia afirma que no mínimo 45 milhões de europeus experimentaram maconha -cerca de 15 milhões fizeram nos últimos 12 meses. A maioria dos consumidores (40%) estava na faixa dos 18 anos; na faixa de 15 a 16 anos, 25%. A conclusão desse trabalho de pesquisa indica uma saída de bom senso, pois, para os observadores políticos, ficou bastante claro que uma lei quebrada por 45 milhões torna-se ameaçada. Lá, enquanto a sociedade discute, os países que ainda não reformularam tendem a fazer vista grossa.
No último fim de semana, o ministro da Saúde francês, Bernard Kouchner, recebeu mais um relatório científico sobre o tema, concluindo também, pela enésima vez, que os males produzidos pelo consumo da maconha não justificam sua proibição. O mais recente relatório francês do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica desautoriza também -o que as estatísticas já tinham feito com eloquência- a tese de que a maconha é uma escada para outras e mais perigosas drogas. A Holanda, onde a maconha é vendida em "coffee shops", sempre foi uma demonstração concreta da falsidade dessa tese. Ora, os consumidores de heroína holandeses não aumentaram em número.
O Brasil vive uma semana decisiva nessa discussão. O Senado deve aprovar um projeto, em plenário, excluindo a pena de prisão para usuários de droga, que ficarão sujeitos a multas, a trabalhos comunitários ou, em casos mais graves, à suspensão de alguns direitos.
Além da lentidão pátria, há também o velho problema da hipocrisia. Signatário do documento da ONU, de junho de 98, no qual se dispõe a ajudar por todos os meios a integração do usuário na sociedade (artigo 7º), o governo brasileiro está silencioso diante do episódio da demissão, pela TV Cultura, da apresentadora Sonia Francine.
Nossa timidez se deve também à pressão norte-americana. Algo que os canadenses conseguem superar, apesar de estar no olho do furacão repressivo. Nem o remédio Marinol, baseado no principio ativo da maconha e usado para aplacar enjôo dos pacientes em quimioterapia contra o câncer, conseguimos produzir, apesar de estarmos prontos para isso no laboratório estadual de Pernambuco. Temos de comprar a produção norte-americana.
Trabalho com o tema no Brasil há 20 anos. Até ajudantes de caminhão gritam ao passar: "Quando é que vamos liberar?" Não há calendário previsto. Enquanto isso, resta-nos repetir a frase de sempre: "Se não há crime sem vítima, por que é crime usar maconha?


Fernando Gabeira, 60, deputado federal (PT-RJ), é autor do livro "A Maconha", da série "Folha Explica" (Publifolha).



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