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TENDÊNCIAS/DEBATES
Apologia da tortura
JOSÉ CARLOS DIAS
Afirmo em plena consciência que o hoje coronel Ustra terá sido dos mais violentos repressores do regime militar imposto ao país
O CORONEL Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante
do DOI-Codi, órgão de repressão do exército, durante os piores
anos da ditadura militar, de 1971 a
1974, acaba de ser homenageado com
um banquete por mais de 400 pessoas, das quais 200 oficiais de alta patente da reserva -entre eles, 70 generais. O fato é gravíssimo e alarmante.
O apoio foi provocado pela notícia
de que Maria Amélia de Almeida Teles, César Augusto Teles, Janaína de
Almeida Teles, Edson Luiz de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de
Almeida, vítimas de tortura no DOI-Codi -além de também terem sido
com eles encarcerados os filhos do casal, de cinco e quatro anos-, estão
processando, perante o juízo cível, o
referido coronel, com fim meramente
declaratório, medida tomada em razão de estar o militar protegido pela
Lei da Anistia.
Advoguei intensamente na defesa
de perseguidos políticos durante
aquele período, várias centenas de
pessoas me confiaram mandato, outras causas defendi, por procuração
outorgada pelo cônjuge ou pelos pais,
na busca desesperada do ente querido
que houvera desaparecido. Daí porque não só procurei defender vidas,
na tutela de suas liberdades, como
tentei salvá-las em vão, tornando-me
patrono de memórias de seres, sem
que muitas vezes se alcançasse sequer o atestado de óbito.
Afirmo em plena consciência, sob a
fé do meu grau, como cidadão, como
cristão, que me sinto no dever de testemunhar publicamente que o hoje
coronel Ustra, vulgo dr. Tibiriçá, terá
sido dos mais violentos repressores
do regime militar imposto ao país,
responsável pelas torturas e mortes
no calabouço do DOI-Codi durante os
quatro ou cinco anos em que foi lá comandante. Guardo em minha memória e em meu arquivo morto capítulos
terríveis de tortura e de morte por
mim testemunhados no compulsar
de autos, nos relatos de testemunhas
e de vítimas de violência.
Tenho a convicção, como advogado
criminal há mais de 40 anos, de estar
sujeito a processo por crime contra a
honra. Assumirei o desagradável papel de réu, se este for o preço para que
não permaneça em vergonhoso silêncio, calando-me diante do escândalo
que o banquete representa. Usarei, se
isso ocorrer, do instrumento da exceção da verdade para que as violências
de Ustra possam, mais uma vez, ser
submetidas ao crivo do Judiciário.
Causou-me surpresa ter notícia de
que algumas pessoas que me pareciam dissociadas dos métodos de tortura lá estavam no rega-bofes, a homenagear e a solidarizar-se com o herói da tortura, coronel Ustra.
Resta uma lição para todos nós. A
bravura das pessoas que resolveram
confiar na Justiça para o reconhecimento meramente simbólico do que
sofreram merece apoio, não com banquetes, mas com atos expressivos de
solidariedade.
O direito que o preso tem ao tratamento digno, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e outras convenções internacionais, independe da gravidade dos fatos que o conduziu ao cárcere, sendo
absolutamente injustificável o tratamento desumano e humilhante que
lhe venha a ser infligido.
O coronel Ustra, premiado hoje como herói por seus camaradas, e que já
foi adido militar no Uruguai durante
o governo Sarney, encarna a lembrança mais terrível do período pavoroso
que vivemos. Terá dito, no discurso
pronunciado, que lutou pela democracia, quando, na realidade, emporcalhou com o sangue de suas vítimas a
farda que devera honrar.
JOSÉ CARLOS DIAS, 67, é advogado criminalista. Foi presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Montoro) e ministro da Justiça (governo FHC).
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