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TENDÊNCIAS/DEBATES
É positivo o projeto que obriga políticos eleitos a matricular seus filhos em escolas públicas?
NÃO
De quando a lei substitui a democracia
GUSTAVO IOSCHPE
BERTOLT BRECHT disse que "há
homens que lutam um dia e são
bons. Há homens que lutam por
um ano e são melhores. Há homens
que lutam por vários anos e são muito
bons. Há outros que lutam durante
toda a vida: esses são os imprescindíveis". De acordo com essa e várias outras definições, o senador Cristovam
Buarque é um homem imprescindível
à nossa República. Sua luta diuturna
pela causa da educação em um país
tão ignorante o torna merecedor de
nosso respeito e nossa admiração.
Como sabe o vulgo, porém, o demo
está nos detalhes e de boas intenções
a sua casa está cheia. O novo capítulo
na cruzada do senador não deve virar
realidade e, mesmo que passe a existir, não deve render os frutos que ele
almeja. Trata-se da idéia de obrigar,
por lei, os filhos de ocupantes de cargos eletivos a cursar a escola pública.
A lógica, imagino, é: se os políticos
sentissem na própria pele o fracasso
educacional brasileiro, se preocupariam mais com as nossas escolas públicas, levando à sua melhoria.
Há, de saída, problemas de exeqüibilidade. Como faríamos o recenseamento dos filhos dos inúmeros ocupantes de cargos eletivos do país?
Mais importante: como garantiríamos que esses pais não matriculariam
as crianças em escolas públicas só para cumprir a lei e então as colocariam
em escolas particulares, onde elas
realmente estudariam?
Afora os problemas de ordem prática, o mais preocupante e desalentador é o pensamento que lhe é subjacente. Fica implícita na proposta do
senador a leitura que faz de seus pares: pessoas públicas que só se ocupariam de problemas públicos se se tornassem problemas privados. Se é assim, então deveríamos abolir o Congresso e deixar que cada brasileiro legisle em causa própria -ao menos seria mais barato e nos pouparia dos vexames dos deputados e senadores.
A proposta do senador revela o desconhecimento que nós, brasileiros,
temos do funcionamento de uma democracia plena. Acreditamos só nos
formalismos democráticos -eleições, leis etc.-, mas não em sua essência: o povo é soberano e decide os
seus destinos por meio dos seus servidores eleitos, a classe política.
Se entendêssemos essa lógica, senadores saberiam que é inútil instituir uma legislação se ela contraria a
vontade popular, pois se torna letra
morta. Compreenderiam o corolário
desse pensamento: a única maneira
de gerar uma mudança em instituição
pública, como o é o sistema escolar, é
por meio da mobilização e da conscientização de toda a sociedade.
A escola brasileira não é ruim porque o político não coloca seu filho nela -ela é ruim porque prefeitos, governadores e presidentes não perdem
voto se a escola for mal nem ganham
voto se a escola vai bem.
Ainda está plasmada na cabeça do
brasileiro médio a idéia de que a boa
escola é aquela com belas paredes
pintadas, boa merenda, uma linda
quadra poliesportiva e cheia de professores bem pagos e com muitos diplomas. Não entendem que esses são
apenas supostos meios (a maioria de
pequeno impacto no aprendizado), e
não a finalidade do sistema escolar,
que é educar as nossas crianças.
Enquanto não vencermos essa batalha do convencimento e tornarmos
o aprendizado um assunto eleitoralmente importante, toda legislação
aprovada cairá no oblívio.
Enquanto prosperar a mentalidade
patrimonialista e elitista dos que estão no poder, não duvido que políticos usem verba obtida em falcatruas
para construir boas escolas públicas
para seus filhos e chegados.
Há quase dois anos, fui contratado
pela UNDP e pelo Banco Mundial para prestar uma consultoria ao nosso
Ministério da Educação sobre financiamento internacional da educação,
em que se procurava sintetizar a experiência dos países que obtiveram
grande sucesso educacional e econômico em curto espaço de tempo. Uma
das conclusões finais do estudo era
que, nos países em que a educação dá
certo, o consenso social em torno do
tema substitui a legislação, mas no
Brasil, um país no qual a educação até
agora fracassa, se acredita que a legislação substitui o consenso.
Por alguma razão obscura, o estudo
jamais foi publicado. Acho que porque não era isso que o pessoal de Brasília queria ouvir e, muito menos,
contar.
GUSTAVO IOSCHPE, 30, mestre em desenvolvimento
econômico pela Universidade Yale, com especialização em
economia da educação, é articulista da revista "Veja" e foi
colaborador da Folha. É autor, entre outras obras, de "A
Ignorância Custa um Mundo" (Prêmio Jabuti 2005).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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