São Paulo, sábado, 24 de dezembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Com mais religiosidade, haveria menos desvios éticos e corrupção?

SIM

Em busca da justiça social

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

A defesa da ética constitui fundamento de praticamente todas as religiões. Assim, é de bom senso avaliar que a religiosidade pode contribuir para condutas mais éticas, evitando a corrupção. Mas há muita gente que, mesmo não professando nenhuma religião, é exemplo de procedimento reto, com muito respeito pela verdade e pelo próximo; e há também quem, embora professe alguma fé religiosa, comete ações antiéticas e atos de corrupção.
Uma nação avança mais em direção a um maior grau de civilidade e justiça quanto mais seus habitantes assimilam valores que não sejam simplesmente a busca do interesse próprio, a vontade de levar vantagem em tudo, mesmo que em detrimento do próximo. É natural que as pessoas desejem progredir, mas não haverá progresso sem levar em consideração outros valores próprios da humanidade, como a busca da ética, da verdade, da eqüidade, da fraternidade, da solidariedade, da liberdade, da dignidade, da democracia. São valores que também encontramos nas religiões.
A palavra hebraica mais citada no Antigo Testamento, na Bíblia, é "Tzedaka", que significa "justiça social", ensina o rabino Henry Sobel. São 513 citações. Assim, por exemplo, no "Deuteronômio" (16: 20): "Segue a justiça, e só a justiça, para que vivas e possuas a terra que o Senhor teu Deus te dá"; nos "Provérbios" (21: 3): "Faz justiça e com retidão; isso é mais aceitável ao Senhor do que oferecer sacrifício"; em "Isaias" (56: 1): "Diz o Senhor: mantém o juízo e faz justiça, pois a minha salvação está prestes a vir e a minha retidão a manifestar-se".
O conceito de justiça é um dos pilares das religiões que têm a finalidade não só de dar uma visão espiritual do mundo, um contato com um ser superior ou alívio ao sofrimento, mas também indicar um comportamento social, disciplinando as relações humanas com temperança e sabedoria. O texto bíblico, que orienta em boa parte a moral da civilização ocidental, contém diversas coleções de princípios sobre a convivência e a estrutura de uma economia e uma política que possam atender melhor a todos.
No Novo Testamento encontramos os mesmos princípios, como nas parábolas de Jesus ao pregar a justiça divina. Como na do senhor da vinha que contratou diversos trabalhadores e combinou o pagamento com cada um deles. No final do trabalho, começou a pagar pelo último que havia chegado. O que chegara primeiro perguntou: "Como paga a mim o mesmo que a ele, se eu trabalhei mais?". "Ora", respondeu o senhor, "você não vê que estou lhe pagando o que ambos combinamos como justo e que o último que aqui chegou também tem o direito de receber o necessário para o sustento de sua família?"
Outra defesa da justiça social está na "Segunda Epístola" de são Paulo aos Coríntios, quando lhes recomenda que sigam o exemplo de Jesus, que, sendo tão poderoso, resolveu se solidarizar e viver entre os mais pobres, pregando justiça e igualdade: "Aquele que colheu muito não deve ter demais, e aquele que colheu pouco não deve ter de menos".
Os mesmos princípios podem ser encontrados no islamismo. Omar, o segundo dos quatro califas sucessores de Maomé, disse a todos que têm um grande patrimônio que reservem uma parte para os que têm pouco ou mesmo nada têm. Também no budismo, de acordo com o argumento do dalai-lama em "Uma Ética para o Novo Milênio", o consumo suntuoso dos mais ricos só é admissível se a sobrevivência de toda a humanidade estiver assegurada.
Como reflexo desses valores é que a Constituição brasileira expressa que a administração pública obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, considerando os direitos humanos e a cidadania.
Para que tais princípios possam ser cumpridos são necessárias reformas que envolvam sistemas de inspeção e punição para prevenir a corrupção, além de evitar conferir poderes discricionários a funcionários que possam conceder favores a terceiros.
Conforme ressalta Amartya Sen em "Desenvolvimento como Liberdade", o modo como as pessoas agem depende freqüentemente de como elas vêem e percebem o comportamento dos outros, especialmente dos que estão nos postos de maior responsabilidade. Ele relembra os ensinamentos de Hui-nan Tzu, em 122 a.C., na antiga China:
"Se a linha medidora da guia mestra estiver certa, o corte da madeira será reto; não porque se faz algum esforço especial, mas porque aquilo que a "dirige" faz com que assim seja. Da mesma maneira, se o dirigente for sincero e íntegro, funcionários honestos servirão em seu governo e os velhacos se esconderão, mas, se o dirigente não for íntegro, os perversos farão como querem, e os homens leais se afastarão".


Eduardo Matarazzo Suplicy, 64, doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA), professor da Eaesp-FGV, é senador da República pelo PT-SP.

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