São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

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Metrópole de aço

FERRÉZ

Mesmo que eu nunca tenha usufruído das suas posses, que você não tenha dado direitos iguais a seus filhos, ainda assim, feliz aniversário

MESMO QUE eu nunca tenha usufruído das suas posses, mesmo que você não tenha dado direitos iguais a seus filhos, mesmo assim, feliz aniversário.
Mãe, eu não te culpo. Faltou a maldade necessária pra vencer. Faz mó cara que não escrevo, acho que, com todo seu poder, você entende, pois, no final, toda rua de São Paulo, se não é contramão, é sem saída, pelo menos pra nós, que, além do poder público, ficamos à mercê do poder paralelo.
Sou o menino que passa carregando a carroça ao lado de um carro importado, mais caro que toda minha vida de salário, e estou indo pra esquina onde os rostos manchados por uma vida dura fazem bifurcação.
Sou o menino que assopra a fumaça do baseado como as fábricas fazem durante todo o dia e sou seus funcionários lá dentro, trancados, na maior parte do tempo mudos e surdos.
Corro pelo trânsito caótico de quem num tem tempo pra abaixar o vidro e perceber que ainda estou vivo, desço a ladeira da indignação pra chegar num bairro alagado, mas a culpa é nossa, mesmo, na hora do voto não fazemos o saneamento básico. Sou a idosa que vive de pegar lata vazia pra sustentar os dois netos.
Como nunca fui aposentado, fico a maior parte do dia imaginando o que é viver com o salário de um deputado.
Também imagino uma bomba que explode e chega a causar efeito no prato vazio de um pai sentado no lixão, olhando o filho que nunca ri.
Você sabe que tem filho seu que dorme ao relento, mas, ainda assim, o terminal de ônibus diz pra não dar esmola, então vamos distribuir pistolas.
Pobre gente que, na terra da garoa, tenta ver algum sentido na vida. Passo com minha caixinha de chiclete na rua de um ladrão de gravata que ora e de um policial mal remunerado que chora quando vê que seu igual é um trabalhador sem expressão e sem futuro. Vejo o concreto e, perante as famílias sem o básico na avenida de tantos fins de semana trágicos, eu sou apenas mais um rapaz comum.
Na metrópole de aço, colecionador de pedras é o que todos nós somos. Sou a mãe que reclama da falta de emprego e que, quando percebe que o filho sem rumo só tem a rua como recurso, liga a TV e viaja na novela.
Sou o evangélico com o bolso vazio e muita fé, que olha os imensos cartazes dos bancos e pensa no diabo.
Continuo a caminhar, vendo as guerreiras se prostituírem bem perto da av. Oscar do luxo, onde a elite branca brinca de Nova York perante o carro blindado sempre estacionado na zona sul. Me enfio por onde começa a rua do desespero, no Alto de Pinheiros, onde um mendigo morreu pra não incomodar o dono da mansão.
Sou o alcoólatra que antes morava na rua sem nome e no barraco sem número, expulso pelo verdadeiro proprietário, dono de algum condomínio fechado -que, da penitenciária, só tem uma diferença: os moradores pensam estar livres.
Mãe, você oferece tanta coisa que sei que não é pra mim, então por que você mente assim, mãe? A senhora sempre cozinhou na mesa farta queijos, vinhos, pães, mas por que, mãe, só alguns podem entrar nessa casa? Não adianta ser a capital da fartura se essa fartura é pra uma minoria.
Mãe, você adivinhou meu destino, não tem nenhum inocente aqui, mas, me diga, por que, quando você me escreve, só me manda impostos? Seu coração não atende mais nem as emergências, não tem médicos que me curem a dor da solidão que seus prédios altos me causam.
Mãe, você é costureira e continua a fazer a colcha de retalhos, tentando, ainda que em vão, juntar todos nós num mesmo lugar e depois chamar de lar. São Paulo virou um lugar pros duros de coração, pros outros. Quem sair por último, feche a escotilha.
Mãe, num vou mentir, você ilude as pessoas de bom coração dizendo que há oportunidades na sua casa, mas todos sabemos que o preço é alto. Quantos eu já vi tirando seis anos num cadeião ou mendigando por não achar emprego? Você mata os meninos e envelhece as meninas, além de esconder o que te incomoda, como os cemitérios, as prisões, os doentes mentais.
Acho que você faz isso comigo também, mãe, você me isola porque não pode me dar o que prometeu.
Quando você me mostrava pras tias, elas me apertavam, me beliscavam, me mordiam. Por que machucamos o que admiramos? Na hora que preciso, eu não tenho o mesmo tratamento que meus primos. Quando teve aquele desabamento, eles ficaram em hotéis. Por que tenho que ficar com os outros num pátio de colégio?
Isolado aqui na minha aldeia, talvez eu nem seja um filho legítimo, afinal, só sei que meu pai é baiano. Talvez eu seja somente um bastardo, mas, mesmo assim, feliz aniversário. Do seu filho, Periferia.


FERRÉZ, 31, rapper e escritor, é autor de "Capão Pecado", romance sobre Capão Redondo, bairro na periferia de São Paulo, onde ele vive, e de "Manual Prático do Ódio".

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