São Paulo, quarta-feira, 25 de abril de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pela extinção das medidas provisórias

CARLOS MIGUEL AIDAR

A defesa da extinção das MPs (medidas provisórias) encontra o seu grande argumento na Constituição italiana, que serviu de inspiração para os constituintes brasileiros, que, em 87, divisavam a possibilidade de implantação de um sistema parlamentarista no Brasil -derrotado em plebiscito posterior.
Na Itália, o governo edita a MP sob sua responsabilidade. No caso de ser rejeitada, o gabinete poderá cair. Uma edição inapropriada resulta em "penalização política". No caso brasileiro, não há qualquer responsabilização por parte do Executivo. O presidente dispõe de um cheque em branco. Ele pode agir como um déspota, senhor das coisas e das pessoas, que cria normas e regras de acordo com a sua vontade e as suas necessidades. É inconcebível, no entanto, haver uma autoridade despótica dentro de uma democracia plena.
Os defensores das MPs se esquecem, também, de uma das diferenças primordiais entre o parlamentarismo e o presidencialismo. No primeiro sistema, o Executivo não apenas governa, mas também legisla. Por isso o uso abusivo de edição e reedição de medidas provisórias no Brasil está desvirtuando esse instituto, convertendo o presidente em uma déspota esclarecido e usurpando do Congresso a sua atividade legislativa.
No Brasil, os Poderes são independentes e as suas autonomias precisam ser preservadas, pelo bem do Estado democrático de Direito.
A extinção das medidas provisórias proposta pela OAB-SP -com o endosso de seus conselheiros e dos presidentes de todas as suas subseções- é um remédio radical, mas necessário para acabar com a instabilidade no ordenamento jurídico a que o país vem sendo submetido por uma máquina administrativa alimentada por MPs. Os governos que sucederam a Constituição de 88, responsável pela criação desse dispositivo, nunca observaram as condições ideais de urgência e relevância para a edição de MPs (art. 62 da Carta).
Poderíamos caracterizar a "relevância" como o que afeta matérias de interesse nacional sobre as quais o Congresso não disporia de tempo hábil para se manifestar. O Executivo adotaria, assim, medidas como forma de lei, submetendo-as de imediato ao Legislativo, que deveria (parágrafo único do art. 62) se manifestar em 30 dias -a partir de sua publicação. A Constituição também estabelece que as MPs perdem eficácia nesse prazo, caso não tenham sido apreciadas, devendo o Congresso disciplinar as relações jurídicas decorrentes.


Não podemos admitir que um instrumento excepcional exclua a sociedade do debate sobre temas relevantes
Mas os transtornos que isso acarreta para os operadores do direito -advogados, juízes e promotores- e para a sociedade não são devidamente pesados pelo Executivo.
A inobservância da "urgência" para a edição de MPs é mais clamorosa ainda. No mês de fevereiro, por exemplo, o governo editou e reeditou, em um só dia, 42 MPs. Muitas das mais de 5.000 edições e reedições de MPs embutem disposições controvertidas, danosas à sociedade. É o caso da MP nš 2.102/01, que aumentou de 5 para 30 dias o prazo para a propositura de embargos à execução nos processos trabalhistas. Na ânsia de conceder essa vantagem para a Fazenda Pública, o governo aumentou o prazo para todas as empresas executadas na Justiça do Trabalho. Quem perdeu com isso? Sem dúvida os trabalhadores que tiveram as suas postulações acatadas pela Justiça.
As medidas provisórias, hoje, são mais abrangentes do que os decretos-lei, previstos na Constituição de 1967, que limitava os assuntos sobre os quais o presidente poderia usar o dispositivo: segurança nacional; finanças públicas, inclusive normas tributárias; criação de cargos públicos; e fixação de vencimentos. Publicado o texto, o decreto-lei tinha vigência imediata. No caso de não ser apreciado pelo Congresso no prazo de 60 dias, era incluído automaticamente na ordem do dia, em regime de urgência. As MPs, ao contrário, desconhecem limitação de matérias, versando desmedidamente sobre leis complementares, Código Penal, Código Civil e questões privativas dos demais Poderes.
Não podemos admitir que um instrumento excepcional exclua a sociedade do debate sobre temas relevantes. Vivemos dentro de um Estado de Direito.
Todas as brechas são utilizadas pelo Executivo. Embora o art. 246 da Constituição proíba a adoção de MPs na regulamentação de artigos que tenham sido alterados por emendas constitucionais, ele não é observado. A continuar o uso abusivo das MPs, vivenciaremos, em breve, uma realidade atípica para uma democracia plena. Com tantas mudanças legais -que os próprios operadores do direito sentem dificuldades em acompanhar-, teremos de inverter a máxima na qual ninguém pode descumprir a lei alegando desconhecimento da mesma.
Também adensaremos a crise do Judiciário, que padece de falta de agilidade, porque, pelas MPs, estaremos sustentando uma insensata litigiosidade, que vem saturando os tribunais, principalmente os superiores. Restringir o uso das MPs -como pleiteia o Legislativo- não passaria de um paliativo capaz de gerar novas distorções.
Ou extinguimos as MPs ou elas ganharão ramificações, como podemos observar em alguns Estados, que já buscam nesse instituto uma solução para as mazelas do Executivo. A própria Advocacia Geral da União vem trabalhando no sentido de defender a constitucionalidade das MPs estaduais. Até o entulho autoritário do decreto-lei tinha o seu uso vedado a governadores e prefeitos. Não é o caso das MPs.
É isso que os brasileiros desejam? Dormir sob uma lei e acordar sob outra? A agilização do Executivo não pode se sobrepor ao ordenamento jurídico nacional, ao equilíbrio entre os Poderes e à plena democracia.


Carlos Miguel Aidar, 54, advogado, é presidente da seccional paulista da OAB.




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