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São Paulo, sexta-feira, 25 de abril de 2003

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JOSÉ SARNEY

Bagdá e os Novos Baianos

Com um mundo globalizado, só a cultura identifica e distingue. Se algum dia o Brasil acabasse, nada restasse de nossas árvores, de nossas cidades, de nossos rios, de nossa gente e de nossas montanhas, o silêncio boiasse num mar sem águas, de areias e ventos, e um deserto imenso cobrisse a face do que já não éramos... Mas, se no meio desse nada, desse vazio que não cabe na nossa imaginação, restasse somente um longo disco da música popular brasileira, bastaria isso para que se soubesse que aqui existira uma grande civilização, uma formidável cultura.
Esse disco seria a pista para encontrar nas letras a poesia, os costumes e os sentimentos mais profundos, do amor ao ódio, da traição à fidelidade. Pela melodia poderíamos identificar os instrumentos e seus sons; pelas vozes, as pessoas que cantavam. Seria a descoberta dos rios mortos, das montanhas desaparecidas, da vida do povo que aqui vivera e, no meio dessas descobertas, veríamos renascerem o Brasil e os brasileiros.
A religião, as nossas crenças, os nossos deuses, as nossas festas, tudo seria possível reconstruir através desse único tesouro: a memória da música popular brasileira. E, no meio dessa riqueza de sons, surgiriam os velhos do meu tempo, os clássicos de hoje, o Luís Gonzaga, o Gonzagão, a cantar "Riacho do Navio", João do Vale no "Vento Leste" (e, já que entrei em águas do Maranhão, Chico Maranhão, Bulcão e Godão, Nazaré e Alcione), Noel Rosa, em "Conversa de Botequim", o "Carinhoso", de Pixinguinha, Miguel Gustavo no "Hino da Seleção", Elizeth Cardoso cantando o "Chão de Estrelas" de Orestes Barbosa, a "Ronda", de Paulo Vanzolini, Roberto Carlos, com "Nossa Senhora", Bethânia e aí, pára, coração. Não cabem neste espaço todos os outros, grande expressão do talento nacional.
Eu sairia para respirar e lembrar-me do que me fez olhar e descobrir a juventude sadia dos meus filhos, quando os Novos Baianos entraram na nossa casa e na nossa vida, invadindo as madrugadas com sons que até hoje me recordam esses encantos e esses tempos. Duas coisas me intrigam e me fazem protestar inconformado com o fato de sermos volúveis: o esquecimento de José Lins do Rego, que não se edita mais, que os de hoje não conhecem, o grande romancista das secas, de obras primas como "Fogo Morto", e dos Novos Baianos. Estes são um grande momento da música popular brasileira. "Acabou Chorare" é um clássico. Canções que peço, quando meus filhos estão de violão a cantar: toquem "Preta Pretinha", "Mistério do Planeta"... E Caetano Veloso, Luís Vieira, Milton Nascimento, Papete, Tom Jobim, Chico Buarque e esse mundão de talento e de Brasil. A identidade brasileira está na cultura popular e nada mais forte nessa cultura do que a música.
Tudo para dizer o quanto sofri quando vi a destruição do Museu de Bagdá e a queima da biblioteca nos incêndios e bombardeios da cidade.
Sempre evoco que o maior desastre "ecológico", que levou um pedaço gigantesco da vida na Terra, da vida que são os livros, foi a queima da Biblioteca de Alexandria.
Se tivessem destruído tudo em Bagdá, mas tivessem deixado os livros e o museu, seria possível descobrir que ali existiu uma grande civilização. Aqueles testemunhos da história do homem não poderiam morrer.
Com o ministro Gilberto Gil, cantor da alma brasileira, divido o coração ferido. Ele sabe que, aqui ou em Bagdá, "em Guadalajara" ou "longe em Nova Déli", a cultura é o mais alto do homem. Nos céus, os valores do espírito.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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