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RAZÕES DA FÉ
O país que concentra o maior
número de católicos do mundo assistiu nas últimas décadas ao
crescimento muito expressivo dos
adeptos das igrejas evangélicas, sobretudo daquelas agrupadas sob o
guarda-chuva do chamado neoprotestantismo. Em 1980, os evangélicos
correspondiam a 6,5% dos brasileiros; passaram a 9,6% em 1991 e, em
2000, atingiram o índice de 16,2%.
No mesmo período, a opção pelo catolicismo refluiu: 89,1% da população se dizia católica em 1980; em
2000, eram 73,9%.
Pode-se concluir a partir destes números que, embora a hegemonia católica no Brasil esteja longe de ser
ameaçada, houve nos últimos 20
anos uma mudança de comportamento associada à escolha religiosa
que figura entre os fenômenos sociais mais destacados do país.
Os dados citados acima foram colhidos pelo Censo de 2000, com base
no qual a Fundação Getúlio Vargas
acaba de divulgar o estudo "Retrato
das Religiões do Brasil". Chama especial atenção o avanço da opção
evangélica na parcela mais pobre da
população. Nas favelas (20,6%), nas
periferias das regiões metropolitanas
(20,7%), entre os desempregados
(16,5%) e os migrantes recentes
(19,1%), as igrejas evangélicas cresceram mais que a média nacional.
São números que confirmam aquilo que intuitivamente ou pela observação empírica de alguma forma já
se sabia: o apelo dos neoprotestantes
toca mais de perto a massa de excluídos. O coordenador do Centro de Políticas Sociais da FGV, Marcelo Neri,
atribui o fenômeno, pelo menos em
parte, à estagnação econômica do
país -essas denominações evangélicas cumpririam mais diretamente
que a Igreja Católica a função de rede
de proteção social ou, até mesmo,
funcionariam como um canal de ascensão social, o que é polêmico.
É significativo que o crescimento
evangélico se concentre nas periferias das grandes cidades. No meio
rural, o predomínio católico atinge o
índice de 84,2% da população, ainda
segundo dados de 2000. Ou seja, para as populações pobres que não foram desenraizadas, que ainda estão
submetidas a modos de vida tradicionais e protegidas das pressões desestabilizadoras do ambiente urbano, o catolicismo permanece sendo
uma opção religiosa pouco sujeita a
abalos.
Entende-se melhor com isso o contraste entre a rigidez doutrinária da
Igreja Católica, muitas vezes refratária às demandas de seus fiéis no que
diz respeito, por exemplo, à esfera
comportamental, e a enorme capacidade de adaptação e aliciamento dos
neopentecostais, cujo êxito se ancora
na promessa de recompensa material imediata.
No protestantismo clássico mapeado pelo sociólogo alemão Max
Weber, a austeridade era uma virtude
e a riqueza um sinal da graça divina.
A ascese e a disciplina moral sobre as
quais repousavam a possibilidade de
salvação individual e que, de maneira
mediada, estimulariam o chamado
espírito capitalista, no caso dos
neoevangélicos foram substituídas
por uma espécie de troca instantânea
do dinheiro pelos benefícios da fé. A
instituição do dízimo é a melhor tradução disso. É sabido, porém, que
essa relação abertamente mercantil
da igreja com seus fiéis cria um ambiente propício ao surgimento de espertalhões dispostos a iludir populações menos esclarecidas.
Seria um erro pretender coibir essa
realidade em nome de alguma pureza religiosa ou de valores iluministas. Qualquer tutela na esfera da fé é
um despropósito. Se há algo que a
tradição iluminista nos legou e que
deve ser cultivado é o princípio da tolerância e do respeito intransigente
às diferenças de credo e de opinião.
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