São Paulo, segunda-feira, 25 de abril de 2005

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RAZÕES DA FÉ

O país que concentra o maior número de católicos do mundo assistiu nas últimas décadas ao crescimento muito expressivo dos adeptos das igrejas evangélicas, sobretudo daquelas agrupadas sob o guarda-chuva do chamado neoprotestantismo. Em 1980, os evangélicos correspondiam a 6,5% dos brasileiros; passaram a 9,6% em 1991 e, em 2000, atingiram o índice de 16,2%. No mesmo período, a opção pelo catolicismo refluiu: 89,1% da população se dizia católica em 1980; em 2000, eram 73,9%.
Pode-se concluir a partir destes números que, embora a hegemonia católica no Brasil esteja longe de ser ameaçada, houve nos últimos 20 anos uma mudança de comportamento associada à escolha religiosa que figura entre os fenômenos sociais mais destacados do país.
Os dados citados acima foram colhidos pelo Censo de 2000, com base no qual a Fundação Getúlio Vargas acaba de divulgar o estudo "Retrato das Religiões do Brasil". Chama especial atenção o avanço da opção evangélica na parcela mais pobre da população. Nas favelas (20,6%), nas periferias das regiões metropolitanas (20,7%), entre os desempregados (16,5%) e os migrantes recentes (19,1%), as igrejas evangélicas cresceram mais que a média nacional.
São números que confirmam aquilo que intuitivamente ou pela observação empírica de alguma forma já se sabia: o apelo dos neoprotestantes toca mais de perto a massa de excluídos. O coordenador do Centro de Políticas Sociais da FGV, Marcelo Neri, atribui o fenômeno, pelo menos em parte, à estagnação econômica do país -essas denominações evangélicas cumpririam mais diretamente que a Igreja Católica a função de rede de proteção social ou, até mesmo, funcionariam como um canal de ascensão social, o que é polêmico.
É significativo que o crescimento evangélico se concentre nas periferias das grandes cidades. No meio rural, o predomínio católico atinge o índice de 84,2% da população, ainda segundo dados de 2000. Ou seja, para as populações pobres que não foram desenraizadas, que ainda estão submetidas a modos de vida tradicionais e protegidas das pressões desestabilizadoras do ambiente urbano, o catolicismo permanece sendo uma opção religiosa pouco sujeita a abalos.
Entende-se melhor com isso o contraste entre a rigidez doutrinária da Igreja Católica, muitas vezes refratária às demandas de seus fiéis no que diz respeito, por exemplo, à esfera comportamental, e a enorme capacidade de adaptação e aliciamento dos neopentecostais, cujo êxito se ancora na promessa de recompensa material imediata.
No protestantismo clássico mapeado pelo sociólogo alemão Max Weber, a austeridade era uma virtude e a riqueza um sinal da graça divina. A ascese e a disciplina moral sobre as quais repousavam a possibilidade de salvação individual e que, de maneira mediada, estimulariam o chamado espírito capitalista, no caso dos neoevangélicos foram substituídas por uma espécie de troca instantânea do dinheiro pelos benefícios da fé. A instituição do dízimo é a melhor tradução disso. É sabido, porém, que essa relação abertamente mercantil da igreja com seus fiéis cria um ambiente propício ao surgimento de espertalhões dispostos a iludir populações menos esclarecidas.
Seria um erro pretender coibir essa realidade em nome de alguma pureza religiosa ou de valores iluministas. Qualquer tutela na esfera da fé é um despropósito. Se há algo que a tradição iluminista nos legou e que deve ser cultivado é o princípio da tolerância e do respeito intransigente às diferenças de credo e de opinião.


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