São Paulo, terça-feira, 25 de abril de 2006

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SÉRGIO DÁVILA

Começou com um abacaxi

Segundo o Laboratório de Ciências Cognitivas da Universidade Princeton, "mania" é um motivo irracional, mas irresistível, para uma crença ou ação. No seu último discurso sobre o Estado da União, George W. Bush disse que os norte-americanos têm um vício -no caso, o petróleo. Poderia ter dito que têm também uma mania: a de promover "mudanças de regime" alhures.
Não é prerrogativa e desejo apenas do atual presidente norte-americano, conforme confirmou à Folha de domingo retrasado o autor intelectual do Plano Irã, que prevê a "mudança de regime" naquele país do golfo Pérsico, seja por que maneira for -desde, é claro, que o "povo iraniano" queira. Tal altruísmo no olho dos outros deve ter vindo já no Mayflower, desembarcado com os primeiros imigrantes.
Se não tanto, está presente pelo menos desde 1893, quando a Casa Branca e seus enviados conspiraram para a derrubada da rainha Liliuokalani, do Havaí. A idéia de Washington era, obviamente, anexar as ilhas ao seu território, mas a moeda de troca para o apoio dos nativos ao golpe de Estado foi um acordo comercial de exportação de abacaxis que nunca veio.
Quem conta é Stephen Kinzer, em seu recém-lançado "Overthrow" ("derrubar", "causar a queda de", em inglês, no sentido de golpe de Estado ou destituição de poder). No novo livro, já obrigatório, o especialista em relações internacionais sustenta que os motivos "oficiais" ianques são sempre muito nobres e embrulhados em pacotes bonitos, como a defesa da democracia e a manutenção dos direitos humanos.
Mas o que movem as armas locais de verdade é garantir ou restabelecer o acesso dos Estados Unidos a recursos naturais (caso da Guerra do Golfo, cujo palco foi o rico em petróleo Kuait). Ou assegurar a influência política em Estados recém-criados ou que pretendem se tornar independentes (como no Panamá, o país-canal). Ou os dois (vide os abacaxis do Havaí).
O curioso é que, a longo prazo, o resultado, na maior parte das vezes, é ruim tanto para o país "ajudado" e para sua população como para os próprios EUA. Donde, conclui Kinzer e uma variedade de analistas de ambos os espectros políticos de Washington, o gene do imperialismo deve estar impregnado no DNA do "homo americanis".
Pode-se concordar ou não, mas é difícil ignorar a eloqüência da lista apresentada pela história. Os Estados Unidos não declaram guerra formalmente a nação nenhuma desde que o presidente democrata Franklin Roosevelt (1882-1945) pediu sucessivamente cinco autorizações ao Congresso para tal fim durante a Segunda Guerra Mundial, a primeira em 8 de dezembro de 1941, a última em 5 de junho de 1942, todas devidamente aprovadas.
De lá para cá, no entanto, além de "mudanças de regime" sugeridas, patrocinadas ou apoiadas -como no caso do Chile e, em menor grau, do próprio Brasil-, o país invadiu, atacou ou bombardeou os seguintes lugares: Coréia, Guatemala, Indonésia, Cuba, Guatemala de novo, Peru, Laos, Vietnã, Camboja, Guatemala outra vez, Granada, Líbano, Líbia, El Salvador, Nicarágua, Irã, Panamá, Kuait, Iraque, Haiti, Somália, Bósnia, Sudão, ex-Iugoslávia, Afeganistão e o Iraque mais uma vez, onde ainda estão.
Pelo trotar do cavalo, o Irã deve se juntar à Guatemala e ao Iraque logo mais na lista dos reincidentes.


Sérgio Dávila é correspondente em Washington. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Roberto Mangabeira Unger, que escreve às terças-feiras nesta coluna.
@ - sdavila@folhasp.com.br


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