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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cota para negros na universidade

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

Um "Oh!" prolongado de surpresa e indignação percorreu o auditório do teatro da PUC de São Paulo. Foi lá pelo início dos anos 80. O orador, negro, americano, pastor e teólogo metodista, concluíra sua brilhante exposição afirmando incisivamente: "Deus é negro!". No palco, algumas celebridades latino-americanas da época, como o sandinista Comandante Ortega, da Nicarágua, e algumas estrelas refulgentes da teologia da libertação. No auditório, uma multidão do que se definia como esquerda cristã, expoentes de uma das facções do futuro PT. Abertos os debates, o teólogo negro foi alvo de irados questionamentos. Que prova tinha ele de que Deus é negro? E ele explicou: "Deus é negro porque Ele é a vítima!". Argumentava com os fundamentos da crença daquele mesmo público: a vítima sacrificial que em Cristo fundara o cristianismo.


A proposição do regime de cotas é apenas uma indicação dos sintomas de nossas enfermidades sociais


Quando cheguei à Universidade de Cambridge, na Inglaterra, pela primeira vez, em 1976, fazia pouco tempo que vários dos mais importantes "colleges" haviam começado a receber mulheres. Fundada em 1200, a provavelmente mais importante universidade do mundo mantivera-se como reduto masculino. Dois "colleges" femininos só foram estabelecidos tardiamente.
A mudança recente e radical era uma medida prática, que um amigo resumiu com alguma ironia. A universidade constatou que metade do gênero humano é constituída de mulheres e que as mulheres são tão inteligentes quanto os homens. Cambridge, ao excluir as mulheres, privava-se de metade das inteligências que poderia recrutar. Os "colleges" de Cambridge medem seu prestígio, sobretudo, pelos êxitos científicos e pelo número de Prêmios Nobel que têm. Só um deles, o Trinity, tem mais Prêmios Nobel que a Itália.
Creio que essas duas histórias ajudam a compreender o que de fato interessa. Seria um equívoco se a adoção de cotas para negros nas universidades brasileiras tivesse por objetivo apenas resolver uma injustiça histórica. A universidade não é boa para isso, até porque essa não é sua função. De nada adianta adotar o regime de cotas na universidade, se a escola elementar e a escola média continuarem na indigência em que se encontram. A decadente qualidade de ensino nesses níveis de escolarização é que constitui uma das principais fábricas de injustiça social neste país, e não só de injustiça racial. A porta dos fundos não fará justiça a ninguém.
Os alunos que são barrados no vestibular não o são por sua raça. Eles o são, negros ou brancos, porque não atingem o nível mínimo e básico de conhecimento para ingressar na universidade. Seu destino é decidido na precária escolaridade prévia que os inabilita para seguir adiante. A escola deficiente é apenas o reflexo de outras muitas injustiças próprias de um país em que ainda há trabalho escravo. A crônica degradação geral das condições de vida de grande parcela da população não será corrigida com o regime de cotas. A cota não supre o saber inexistente e necessário para seguir um bom curso universitário.
Certamente é justa a demanda dos afrodescendentes -que vem sendo feita, no geral, por quem não é afrodescendente. A fórmula, porém, copiada do modelo americano, não só não resolve essa injustiça, como cria outras, como se viu em vestibular no Rio de Janeiro. A universidade deve ser pensada em termos universais. Ela se torna pobre por não abrigar talentosas vítimas da injustiça social de todas as condições sociais; e esse é o verdadeiro problema.
Quando vejo uma criança cheirando cola ou perambulando pelas ruas, seja ela negra ou branca, fico pensando na vítima que nela há, que é a sociedade inteira. As estratégias de sobrevivência dessa criança, mesmo na sua não rara nocividade, mostram-nos uma maravilhosa competência para driblar as adversidades da vida. Essa mesma competência poderia torná-la um médico que salva vidas, um engenheiro que constrói estradas, um arquiteto que sonha moradias, um físico ou biólogo que desvenda mistérios da vida e do mundo, um paisagista que semeia flores, um juiz que faz justiça, um agrônomo que sacia a fome de tantos com o fruto da fartura.
O verdadeiro sujeito dessa questão não é o negro, é a vítima. Nem toda vítima é negra e, hoje, nem todo negro é vítima. O débito não é primordialmente a injustiça, e sim o empobrecimento da sociedade que na vítima há. É inútil lamentar o passado. É preferível construir o futuro, que não existirá enquanto houver vítimas. A proposição do regime de cotas é apenas uma indicação dos sintomas de nossas enfermidades sociais. Mas dificilmente será o remédio, enquanto a máquina poderosa de exclusão continuar funcionando e a sociedade e o Estado se mostrarem tão pouco criativos no diagnóstico e na solução.

José de Souza Martins, 64, é professor titular do Departamento de Sociologia da USP e autor de "A Sociedade Vista do Abismo" (Vozes, 2002), entre outras obras.


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