São Paulo, sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

Do cacete à eletrônica

JOÃO FRANCISCO Lisboa escreveu um clássico sobre a evolução do processo eleitoral: "Eleições na Antiguidade". Desde as eleições feitas por palmas, em Atenas, até a nossa urna eletrônica, foi um caminhar longo e cheio de imaginação. O grande problema sempre foi como evitar a compra de votos. Em 1841, em Liverpool, uma eleição de deputado custava 532 libras. Já em Londres, 404. Na igreja, na eleição dos papas, a rotina não era outra. Numa carta do padre Vieira, ele relata que, na sucessão do papa Clemente 10º, a eleição levou 28 dias, com dinheiro para lá e para cá, e 22 cardeais comprados. Os saxônicos seguiram essa regra da compra de votos, e a corrupção começou nos tempos de Isabel (Elizabeth 1ª), com Tomás Longe, que comprou votos a dinheiro para eleger-se num distrito. Nos Estados Unidos, era essa também a maior desgraça das eleições, o que continua. Vejam-se as acusações sobre o dinheiro do petróleo na campanha do Bush. Já no Brasil, a "precária e mesquinha carreira de empregos" -segundo Lisboa- foi a preferida. Mas tivemos as "eleições a cacete". No Maranhão, dona Ana Jansen, célebre matriarca-chefa do Partido Conservador, tinha uma equipe famosa de "caceteiros" que ganhava todas as eleições, e ela, que era tatibitate, dizia "cute o que cutá, meu fio Manezinho tem de sê deputá". Eu era jovem estudante de direito, em 1950, quando fui contratado para ser fiscal de uma eleição suplementar, que era a eleição feita em urnas anuladas, sistema já desaparecido. A seção eleitoral a ser renovada era em Bom Lugar, interior do município de Bacabal, onde não se chegava senão a cavalo. Na véspera da eleição, os lados estavam excitados. Dois barracões, cada um com uma ala. Eram o xote e a sanfona de um lado e do outro. Bebida à vontade. Tiros de quando em vez. Eu pensava como tinha me metido numa coisa dessas. Fui acordado às duas horas da manhã com a denúncia: o juiz está com seu Leda (era o outro lado) e vai fraudar. Pediam que eu fosse ao juiz. Com mais medo do grupo já alcoolizado do que da fraude, incorporei-me àquela gente, tendo à frente um conhecido orador da região, Alcides Sarmento, com dois revólveres na cintura. Quando acordamos o juiz, ele veio pálido e em pânico. Sarmento foi o primeiro a falar: "O senhor está com nós ou contra nós?". O juiz, tremendo, respondeu: "Tou com nós". Quando apuraram a urna, alguns dias depois, a eleição empatara. Não tinha TV, pesquisa nem o vigoroso Brasil de hoje. Era um Brasil do século 19. Hoje, eleições pacíficas, limpas e uma democracia incontestável, vinda do cacete à urna eletrônica.

jose-sarney@uol.com.br


JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Nelson Motta: Na boca de espera
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.