São Paulo, quarta-feira, 25 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANTONIO DELFIM NETTO

A doutrina Bush-Köhler

Na semana passada, duas colocações de pessoas de altíssima responsabilidade na manutenção da "ordem mundial" causaram perplexidade. A primeira foi a apresentação da chamada "Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos", que todo presidente tem a obrigação de apresentar ao Congresso. A nova doutrina difere radicalmente das anteriores e envolve um perigoso processo de avaliação, altamente subjetivo, das intenções do mundo em relação aos Estados Unidos.
No fundo, a doutrina "Bush" se resume a dois pontos fundamentais: 1) os EUA "nunca mais permitirão que outro país desafie a sua superioridade militar, como aconteceu com a extinta União Soviética". O país está agora ameaçado menos pelos países fortes do que pelos mais fracos devido à maligna combinação do radicalismo com a moderna tecnologia; 2) os EUA não podem mais (como sempre fizeram no passado) confiar apenas na sua capacidade de reação -agora têm de impedir que seus inimigos ataquem primeiro.
Como é evidente, essas duas premissas tiram do centro das decisões político-militares norte-americanas todos os organismos internacionais.
No máximo, eles podem fazer o papel de ratificadores das decisões unilaterais tomadas pelo poder norte-americano cada vez que, correta ou incorretamente, ele interpretar o comportamento de um país como ameaça à sua superioridade militar. Se não ratificarem a ação, os organismos perderão sua "significância" e seu "financiamento". A burocracia internacional pode viver bem sem a primeira, mas não sem o segundo...
Não menos agressiva (e talvez não-independente dessa doutrina "Bush") foi a surpreendente declaração do superburocrata encarregado de manter a "ordem no mercado financeiro internacional". O sr. Horst Köhler, diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, fez uma espantosa declaração ao "International Herald Tribune". Segundo ele, uma guerra dos EUA contra o Iraque poderá ter efeitos positivos (sic) para a economia global -"se a ação for rápida e restrita ao Iraque, o impacto econômico será pequeno e poderá haver, inclusive, efeitos positivos, porque a situação ficará mais clara".
Mais clara para quem? Para os investidores internacionais! Segundo o sr. Köhler, a "ameaça latente da guerra EUA-Iraque torna a situação indefinida, o que deixa os investidores hesitantes". A amoralidade do "mercado" financeiro, que, mesmo à custa de milhões de mortos, comemoraria uma guerra "rápida" e "asséptica" que eliminasse a situação indefinida que deixa os investidores hesitantes, nunca foi tão flagrante e indecente... Mas o sr. Köhler é cuidadoso: "Se o conflito se prolongar", afirma ele, "haveria o risco da imprevisibilidade", prejudicando o funcionamento do "mercado financeiro"...
Talvez a doutrina "Bush-Köhler" não seja tão imoral como parece à primeira vista. Bush afirmou que quem quiser competir com os EUA no campo não-militar será respeitado. E Köhler, como bom burocrata, apressou-se em declarar que "não estava recomendando a guerra, mas apenas analisando, cientificamente, as suas consequências para o mercado". Ah, bom!...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br



Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O fato novo
Próximo Texto: Frases
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.