São Paulo, quarta-feira, 25 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A renúncia de pensar

DENIS LERRER ROSENFIELD

Seria de esperar que o PT designasse para me criticar alguém que utilizasse argumentos, e não apenas invectivas procurando desqualificar o adversário. É bem verdade que há um avanço, pois o meio escolhido não é o do processo judicial, mecanismo de imposição de um "pensamento único" que o partido tem usado no Rio Grande do Sul para calar as vozes críticas. Lástima, contudo, que o partido se recuse a discutir análises e a averiguar os fatos.
O mecanismo utilizado é amplamente conhecido: coloca-se aquele que critica sob a pecha de "direitista", "reacionário" ou outras do mesmo calão, como se isso fosse suficiente para terminar a discussão. Na verdade, o partido procura se colocar na posição religiosa de representante do "bem" contra os que ousam questionar as suas práticas e os seus princípios doutrinários. Na ausência de idéias, fica a agressão gratuita.
A incapacidade de argumentar e questionar se encontra, aliás, no centro do livro de Hannah Arendt "Eichmann em Jerusalém" (Companhia das Letras, 1999). A autora se defronta com um personagem estranho, um carrasco tranquilo, que apenas afirma sua boa consciência. Tendo cometido as piores atrocidades -e as reconhecendo-, ele, porém, parece estar de bem consigo.
Deformando o imperativo categórico de Kant -aja como se a máxima de tua ação pudesse ter validade universal-, ele se justifica dizendo que seguiu um imperativo, imposto para toda a sua nação. Substituindo a noção de universalidade pela da vontade do líder máximo, ele conseguia, para si, silenciar qualquer dilema moral.
Hannah Arendt, perplexa diante de tal ausência de pensamento, foi obrigada, no entanto, a constatar que esse indivíduo parecia normal, embora estranhamente normal.
A experiência revolucionária do século 20, tendo na extinta União Soviética o seu ponto de maior paroxismo, construiu uma forma de partido que reproduziu o mesmo tipo de mentalidade. Os militantes obedeciam ordens, pois o que o partido prescrevia era tido por verdadeiro. A cegueira no seguir as orientações partidárias levava-os a produzir atos de violência, de destruição da sociedade existente, ao mesmo tempo em que imbuía aqueles que assim agiam de um sentimento de satisfação, o contentamento de representar o partido da verdade.


O discurso revolucionário só é convincente para os que já estão razoavelmente persuadidos


O comunismo chegou a dignificar esse tipo de intelectual, denominando-o orgânico, por executar ordens, tendo uma atitude de fidelidade partidária.
Ao contrário do militante nazista, o stalinista/comunista tinha ainda um acréscimo de boa consciência, pois lutava, enfim, pela "redenção da humanidade". Nada muito distinto do discurso da "inclusão social", pois, sendo os representantes da "boa causa", quaisquer de seus atos estavam de antemão justificados. Inclusive, quando esses próprios militantes foram devorados por essa máquina mortífera, alguns foram para o cadafalso com a convicção de que a história lhes daria razão. Os fatos encobertos por suas ações foram "ocultados" até no momento extremo da vida, a morte.
A desqualificação do adversário faz parte desse tipo de mentalidade, pois o coloca como alguém a ser execrado por não seguir a boa palavra. Os fatos foram ocultados, pois assim os eleitores podem ser capturados por esse processo. No momento em que se abandona a esgrima dos argumentos, passa-se a esconder tudo aquilo que pode causar um prejuízo eleitoral. O discurso revolucionário só é convincente para os que já estão razoavelmente persuadidos, para os outros vale apenas a dissimulação.
Na dissimulação, oculta-se o que é mesmo de conhecimento público. Por exemplo, no Primeiro Fórum Social Mundial, as Farc foram convidadas e recebidas no Palácio Piratini. Na posse do governador, tremulavam bandeiras de Cuba e de Che Guevara, mostrando uma mesma afinidade.
Muito se fala de inclusão social, porém a Prefeitura de Porto Alegre, depois de 14 anos de governo, foi incapaz de resolver o problema de uma média de 300 crianças de rua que perambulam, na miséria e na droga, pelas ruas da cidade. Muito mais é gasto com a propaganda oficial, em horário nobre de televisão, com o "discurso" pela "inclusão social".
É esta a vitrine nacional?
O Orçamento Participativo, ícone do PT, lembra as dissimulações da burocracia comunista ao esmagar o anarquismo e a liberdade espontânea dos primeiros sovietes. Nos seus primórdios, o orçamento tinha o suave sabor da liberdade, da participação popular, do controle que esses participantes tinham de qualquer intervenção do partido. No entanto a burocracia partidária se apoderou da liberdade política, controlando tudo o que lá é feito e seguindo uma liturgia próxima da religiosa.
Nem simples trabalhadores são poupados. Maria Ângela Fachini, funcionária de uma agência de turismo que fazia a intermediação entre o Clube de Seguros da Cidadania, o PT e as contribuições irregulares de campanha, foi obrigada a deixar o Estado sob o Programa de Proteção de Testemunhas da Polícia Federal. Voltou na semana retrasada para um novo depoimento à Assembléia Legislativa, referendando tudo o que já antes havia dito no Ministério Público.
Se o PT tivesse verificado o que acontecia dentro do seu próprio partido e no Estado, poderia avaliar o quão distante se encontra do critério da ética na política. O inusitado, porém, é que, sob ameaça de morte, essa funcionária compareceu com a cabeça envolta num capuz, pois precisa se proteger. Poderia ser o título de uma novela: "A Encapuzada". Contudo é a triste realidade à qual foi reduzido o Rio Grande do Sul sob um governo petista radical.


Denis Lerrer Rosenfield, 50, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política". É autor, entre outros livros, de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995).



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