São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nova Orleans, Iraque

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Nos últimos quatro anos, assisti nos EUA a dois acontecimentos gravíssimos, causadores de muita morte e destruição, um deles provocado por mão humana -o ataque às Torres Gêmeas-; o outro, natural -o furacão Katrina, que acaba de destruir Nova Orleans. Para além da dimensão das tragédias, esses dois acontecimentos não parecem ter nada em comum. Mas as aparências iludem.


A facilidade com que as nossas elites políticas se deixam seduzir por esse modelo sociedade e de Estado é fruto de má-fé


Em primeiro lugar, ambos revelam, cada um a seu modo, as enormes fragilidades da segurança interna do país mais rico e poderoso do mundo. Ao contrário do que se tem dito, ambos os acontecimentos foram previstos, e previstos com detalhe. Os relatórios secretos da CIA vinham apontando para a iminência de um ataque dramático a Nova York por parte da Al Qaeda, usando a aviação civil.
Do mesmo modo, são muitos os relatórios de várias agências de proteção civil, que nos últimos anos, chamaram a atenção para a necessidade de reforçar os diques de Nova Orleans, evitar a erosão dos pântanos e preparar ações de retirada em grande escala. Em ambos os casos, o governo não levou a sério os alertas. No caso de Nova Orleans, a imprevidência foi particularmente grave, uma vez que, ainda no ano passado, o governo reduziu em cerca de 50% o orçamento do Corpo de Engenheiros encarregado das infra-estruturas de proteção da cidade.
Em segundo lugar, as respostas do governo a essas catástrofes revelam alguns traços comuns, igualmente inquietantes para os cidadãos americanos. A resposta aos atentados em Nova Iorque foi a invasão do Afeganistão, seguida da do Iraque. A eficácia (para nem falar da justificação jurídico-política) dessas medidas está hoje tragicamente posta em causa. A maioria dos cidadãos norte-americanos não se sente hoje mais seguro e pensa que o presidente lhes mentiu quando justificou a invasão com a existência de armas de destruição maciça e a iminência do seu uso contra os EUA. Essa convicção vai certamente alastrar ainda mais depois da patética confissão de Colin Powell de que foi ludibriado (e ludibriou o mundo) quando mostrou na ONU armas que não existiam, considerando agora esse discurso uma mancha negra na sua carreira.
No que respeita à tragédia de Nova Orleans, os norte-americanos estão atônitos e indignados com a ineficácia da resposta do governo. Como foi possível que milhares de pessoas tenham esperado de três a sete dias para serem retiradas ou receberem água potável e alimentos, razão por que muitos terão morrido desnecessariamente?
As comparações com tragédias no estrangeiro são inevitáveis. Quando o tsunami assolou a Ásia, o socorro chegou em 24 horas. Quando, no ano passado, Cuba foi varrida por um violento furacão, o governo retirou mais de um milhão de pessoas sem uma única perda de vidas.
E, para muitos, o fantasma do Iraque e da luta contra o terrorismo volta à superfície. O "Wall Street Journal", conservador, interroga-se: como é possível que uma divisão da Força Aérea estacionada próximo de Nova Orleans, treinada e preparada para chegar a qualquer parte do mundo em 18 horas, tenha levado vários dias para chegar à cidade? Como é possível que, no país com o exército tecnologicamente mais avançado, as polícias das diferentes localidades usem sistemas de transmissão incompatíveis e não haja pilhas de substituição quando a energia elétrica falha?
O mesmo jornal, na sua edição de 9 de setembro, noticia que começou já a corrida ao ouro dos contratos milionários para a reconstrução de Nova Orleans, e, para surpresa dos ingênuos, as empresas já contratadas pelo governo são as mesmas que foram contratadas para reconstruir . . . o Iraque.
É o mercado a impor a sua lei, alimentando-se da desgraça dos cidadãos, com a mesma lógica individualista e cega com que as autoridades federais ordenaram o esvaziamento da cidade sem se darem conta que 100 mil pessoas não tinham carro e nem lugar para onde ir.
O modelo de sociedade que vigora nos EUA e que a diplomacia e as Forças Armadas norte-americanas têm vindo a impor no mundo, com o apoio zeloso do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, está hoje mais do que nunca desacreditado. O relatório da ONU sobre a desigualdade no mundo, que acaba de sair, denuncia com inusitada veemência fatos que os políticos e governos conservadores de todo o mundo preferem não saber: no país mais rico do mundo, não há um sistema nacional de saúde, e 40 milhões de cidadãos não têm qualquer seguro de saúde; a mortalidade infantil tem aumentado desde 2000 e é hoje igual à da Malásia; os negros de Washington DC têm uma mortalidade infantil mais alta que os habitantes do Estado indiano de Kerala.
A tragédia de Nova Orleans revela que, nesse modelo de sociedade, o Estado está cada vez menos disponível para garantir o bem-estar e a segurança dos cidadãos. Quando os atingidos são sobretudo os pobres e negros, como aconteceu nesse caso, essa indisponibilidade transforma-se em repugnante indiferença. Perante esses fatos, a facilidade com que as nossas elites políticas se deixam seduzir por esse modelo de sociedade e de Estado não pode ser atribuível à ignorância. É produto de má-fé e de corrupção moral e política.

Boaventura de Sousa Santos, 64, sociólogo, é professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Escreveu, entre outros livros, "A Universidade no Século 21: Para uma Reforma Democrática e Emancipatória da Universidade" (Editora Cortez, 2004).


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