São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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O Brasil deveria adotar o voto facultativo?

NÃO

De volta à República Velha?

FERNANDO LUIZ ABRUCIO

NO SENSO comum, o voto facultativo é visto como o supra-sumo das liberdades políticas.
Mas o que idealmente parece ser o mundo perfeito esconde, na verdade, uma série de equívocos conceituais e históricos sobre a prática democrática atual. No caso brasileiro, a abolição do voto obrigatório reforçaria os elementos de redução da participação política que aparecem em outros lugares. De certa forma, voltaríamos a uma política ao estilo da República Velha, mais oligárquica e privatista.
O argumento mais usado pelos defensores do caráter facultativo da votação é o seguinte: se votar é um direito, seria um absurdo torná-lo uma obrigação. Essa idéia é atrativa do ponto de vista lógico, mas ela não distingue a existência de dois tipos de direito no mundo contemporâneo: o individual e o coletivo.
Os críticos da obrigatoriedade do voto separam radicalmente tais direitos, quando não ignoram os coletivos em nome da preservação das liberdades individuais. Obviamente, quando ocorre uma grande hecatombe social, como a crise econômica atual, os defensores dessas idéias ou se escondem, ou procuram garantir o "direito individual" daqueles que perderam seus recursos.
A compatibilização dos direitos individuais e coletivos, em vez do confronto, é a grande tarefa das democracias contemporâneas. Trata-se de proteger a esfera individual de ações indevidas do Estado ou da opinião pública e, ao mesmo tempo, garantir condições para que todos possam ter oportunidades iguais, incluindo aí adoção de políticas que evitem danos às próximas gerações.
É interessante observar a prática política do lugar em que mais se defende o voto facultativo, os Estados Unidos. O dia da votação em solo norte-americano não é feriado. O que parece ser um mero detalhe, na prática, não o é. Os trabalhadores mais pobres, notadamente os negros e os latinos, são normalmente os que menos comparecem às urnas. Com isso, cria-se uma situação em que "alguns são mais iguais do que os outros".
Mesmo defendendo a "primazia dos direitos individuais", a política norte-americana colocou a vida pessoal no primeiro plano das disputas -algo que parte da esquerda brasileira copiou nesta eleição. A devassa da esfera íntima tem esgarçado o liberalismo profundo dos EUA, aquele defendido pelos "pais fundadores" e que não tem nada a ver com a cartilha oportunista atual, defensora não só de um Estado pequeno, mas de uma esfera pública diminuta.
Em vez do Éden, a pátria do voto facultativo tem produzido a piora da qualidade da participação política. Essa idéia teria conseqüências ainda piores no Brasil. Comparo a discussão do voto facultativo com a proibição constitucional do voto do analfabeto, em 1891. Essa restrição marcou o século 20, pois só foi revogada com a Constituição de 1988. A proibição do voto do analfabeto teve dois efeitos nefastos. O primeiro foi manter por longo tempo um ridículo índice de escolaridade da população brasileira. Isso porque seria muito difícil que os não-votantes se mobilizassem para lutar pela educação, ao passo que os demais não tinham tanto interesse em defender a ampliação da escolarização, já que eram os beneficiados. Coincidência ou não, esse cenário só começou a mudar quando os analfabetos começaram a votar.
A restrição do voto do analfabeto não restringiu por completo a participação dessa fatia do eleitorado. Ela era mobilizada de forma "coronelista", de modo que havia uma tutela política que tornava o sistema mais oligárquico. Como segundo efeito nefasto, a restrição educacional produziu uma esfera pública mais privatista e clientelista, processo que vem sendo modificado pela democratização recente do país, com a inclusão de amplas parcelas da população no sistema político e o aumento da competição pelo poder. Pesquisas no Brasil e no mundo mostram que os menos escolarizados -na maioria, mais pobres- são os que menos votam quando a participação é facultativa. Assim, o fim da obrigatoriedade tenderia a reduzir a expansão do direito político impulsionada pela Constituição de 1988. Oligarquização e privatismo ganhariam terreno. Quem sabe assim voltássemos à República Velha. Não seria esse o sonho dos que se horrorizam com a atual democracia de massas?

FERNANDO LUIZ ABRUCIO pela USP, é professor e coordenador do programa de pós-graduação em administração pública e governo da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas) e colunista da revista "Época".



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