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TENDÊNCIAS/DEBATES
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O Brasil deveria adotar o voto facultativo?
NÃO
De volta à República Velha?
FERNANDO LUIZ ABRUCIO
NO SENSO comum, o voto facultativo é visto como o supra-sumo das liberdades políticas.
Mas o que idealmente parece ser o
mundo perfeito esconde, na verdade,
uma série de equívocos conceituais e
históricos sobre a prática democrática atual. No caso brasileiro, a abolição
do voto obrigatório reforçaria os elementos de redução da participação
política que aparecem em outros lugares. De certa forma, voltaríamos a
uma política ao estilo da República
Velha, mais oligárquica e privatista.
O argumento mais usado pelos defensores do caráter facultativo da votação é o seguinte: se votar é um direito, seria um absurdo torná-lo uma
obrigação. Essa idéia é atrativa do
ponto de vista lógico, mas ela não distingue a existência de dois tipos de direito no mundo contemporâneo: o individual e o coletivo.
Os críticos da obrigatoriedade do
voto separam radicalmente tais direitos, quando não ignoram os coletivos
em nome da preservação das liberdades individuais. Obviamente, quando
ocorre uma grande hecatombe social,
como a crise econômica atual, os defensores dessas idéias ou se escondem, ou procuram garantir o "direito
individual" daqueles que perderam
seus recursos.
A compatibilização dos direitos individuais e coletivos, em vez do confronto, é a grande tarefa das democracias contemporâneas. Trata-se de
proteger a esfera individual de ações
indevidas do Estado ou da opinião pública e, ao mesmo tempo, garantir
condições para que todos possam ter
oportunidades iguais, incluindo aí
adoção de políticas que evitem danos
às próximas gerações.
É interessante observar a prática
política do lugar em que mais se defende o voto facultativo, os Estados
Unidos. O dia da votação em solo norte-americano não é feriado. O que parece ser um mero detalhe, na prática,
não o é. Os trabalhadores mais pobres, notadamente os negros e os latinos, são normalmente os que menos
comparecem às urnas. Com isso, cria-se uma situação em que "alguns são
mais iguais do que os outros".
Mesmo defendendo a "primazia
dos direitos individuais", a política
norte-americana colocou a vida pessoal no primeiro plano das disputas
-algo que parte da esquerda brasileira copiou nesta eleição. A devassa da
esfera íntima tem esgarçado o liberalismo profundo dos EUA, aquele defendido pelos "pais fundadores" e que
não tem nada a ver com a cartilha
oportunista atual, defensora não só
de um Estado pequeno, mas de uma
esfera pública diminuta.
Em vez do Éden, a pátria do voto facultativo tem produzido a piora da
qualidade da participação política.
Essa idéia teria conseqüências ainda piores no Brasil. Comparo a discussão do voto facultativo com a proibição constitucional do voto do analfabeto, em 1891. Essa restrição marcou o século 20, pois só foi revogada
com a Constituição de 1988.
A proibição do voto do analfabeto
teve dois efeitos nefastos. O primeiro
foi manter por longo tempo um ridículo índice de escolaridade da população brasileira. Isso porque seria
muito difícil que os não-votantes se
mobilizassem para lutar pela educação, ao passo que os demais não tinham tanto interesse em defender a
ampliação da escolarização, já que
eram os beneficiados. Coincidência
ou não, esse cenário só começou a
mudar quando os analfabetos começaram a votar.
A restrição do voto do analfabeto
não restringiu por completo a participação dessa fatia do eleitorado. Ela
era mobilizada de forma "coronelista", de modo que havia uma tutela política que tornava o sistema mais oligárquico. Como segundo efeito nefasto, a restrição educacional produziu
uma esfera pública mais privatista e
clientelista, processo que vem sendo
modificado pela democratização recente do país, com a inclusão de amplas parcelas da população no sistema
político e o aumento da competição
pelo poder.
Pesquisas no Brasil e no mundo
mostram que os menos escolarizados
-na maioria, mais pobres- são os
que menos votam quando a participação é facultativa. Assim, o fim da obrigatoriedade tenderia a reduzir a expansão do direito político impulsionada pela Constituição de 1988. Oligarquização e privatismo ganhariam
terreno. Quem sabe assim voltássemos à República Velha. Não seria esse
o sonho dos que se horrorizam com a
atual democracia de massas?
FERNANDO LUIZ ABRUCIO
pela USP, é professor e coordenador do programa de pós-graduação em administração pública e governo da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas) e colunista da revista
"Época".
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