São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Vocês querem bacalhau?

MARCELO LEITE

É um equívoco propagar visão tranquilizadora sobre um pescado que se acha em crise no mundo todo, além das fronteiras da Noruega

O artigo "Bacalhau da Noruega em ótima forma", de Johnny Haaberg, representante do Conselho Norueguês da Pesca no Brasil, publicado aqui no dia 18, apontou supostos equívocos em reportagem de minha autoria.
Sob o título "Bacalhau verdadeiro está sob ameaça de extinção", o texto saíra no caderno Turismo, da Folha, 11 dias antes.
Não havia equívocos na reportagem. Tanto é assim que o artigo, que se propunha a corrigir "impressão totalmente equivocada em relação ao status desse pescado", não contesta suas informações.
Ao contrário, a contestação repete afirmações da reportagem. Por exemplo, a de que Noruega e Rússia administram o maior estoque viável do peixe Gadus morhua (nome científico do bacalhau verdadeiro), no mar de Barents. E a de que a cota de pesca do bacalhau para 2011, no Ártico Nordeste norueguês, foi elevada para 703 mil toneladas, já que a população do peixe estaria em recuperação.
O erro de Haaberg está em propagar visão tranquilizadora sobre um pescado que se encontra em crise no mundo todo, além das fronteiras estreitas da Noruega.
A espécie Gadus morhua está classificada como "vulnerável" pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na abreviação em inglês).
É o terceiro nível de ameaça, na escala de sete graus que vai de "baixa preocupação" até "extinta".
O fato de haver uma população viável em Barents, manejada segundo recomendações científicas, não diminui a gravidade de sua situação noutros mares.
Do mar do Norte à região de Terra Nova, no Canadá, os cardumes entraram em colapso. A pesca foi restringida ou proibida -inclusive na costa oeste norueguesa, onde a retirada autorizada neste ano é de meras 21 mil toneladas. Haaberg está no direito de defender a marca "bacalhau da Noruega", mas comete o equívoco de identificá-lo com o "bacalhau verdadeiro". Como espécie, o Gadus morhua -cujo nome comum mais correto é "bacalhau do Atlântico"- está sob ameaça de extinção, e o consumidor brasileiro precisa conhecer essa realidade.
Tanto melhor que o governo norueguês se comprometa a continuar "cuidando muito bem do bacalhau da Noruega também no futuro, mantendo vibrante a velha tradição de quase 200 anos da exportação desse produto para o Brasil". Mais uma razão para o comprador tomar nota da importância de verificar a procedência do produto.
A tradição de comer bacalhau no Brasil e na América Latina é muito anterior à importação da Noruega.
Foi trazida pelos portugueses e espanhóis, que atravessavam o Atlântico para pescá-lo, até a beira da extinção, nas proximidades da América do Norte, raiz de um grave contencioso ecológico-diplomático entre ibéricos e canadenses.
Já foi comida de escravos e de pobres, dando origem ao dito hoje contraditório: "Para quem é, bacalhau basta". O animador Chacrinha lançava as peças salgadas para o auditório, aos gritos: "Vocês querem bacalhau?".
Sim, queremos.
Mas não ao preço de sua escassez e eventual extinção.


MARCELO LEITE é repórter especial da Folha e autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora Unicamp, 2008).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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