São Paulo, quinta-feira, 25 de novembro de 2010 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Apologia da norma culta
ALDO PEREIRA
Muitos fatores concorreram, desde o descobrimento, para fragmentar a língua portuguesa de Caminha em dialetos brasileiros: extensão territorial, precariedade de comunicações, nível rudimentar da educação dos colonos, diversidade tribal afro-indígena. Mas a literatura e a mídia atestam que sobrepaira na diversidade atual um dialeto minoritário associado a prestígio e poder. Toda língua evolui, claro. Preferivelmente, contudo, em processo similar ao de leis e costumes, conducente à assimilação gradual das mudanças. Estabilidade de padrões é indispensável à organização social, a ponto de justificar coerção do Estado; pense na moeda e no sistema métrico. A norma culta (hoje menos referida por esse nome), tem provido a língua de um referencial resguardado contra variações que, se prematuras e indiscriminadas, poderiam comprometer a eficiência da comunicação. A norma culta tem favorecido também a comunicação inteligente na atividade intelectual, na política e no ordenamento jurídico: nenhum sistema legal poderia operar com eficiência, em país algum, sem rigor gramatical e semântico, tanto na prescrição das leis quanto na jurisprudência. Diante dessas evidências, por que a norma culta inspira tanta controvérsia episódica e veemente? A principal das várias razões pode ser sua conotação de elitismo tingido de racismo, a tácita e presunçosa inferência de que falar e escrever "bem" (em geral, extensão de outros privilégios no acesso ao saber) legitima a hegemonia duma classe. Outra razão pode estar no desconhecimento de como variantes dialetais fragmentam as línguas. Quantos percebem, por exemplo, que a língua aprendida na infância é sempre um dialeto? Ou que a escrita é um dialeto da fala? Quer se destine à leitura em voz alta (rádio, TV, artes cênicas, discursos, palestras), quer à leitura silenciosa processada no ritmo e grau de concentração do leitor, a escrita se caracteriza por atributos próprios e cumpre papel distinto do imediatismo da fala. Por isso, caluniar a necessária identidade dialetal da norma culta para impugnar o padrão homogêneo de comunicação é o avesso do preconceito. Traz, entre outros contraproducentes efeitos, o de entorpecer a aquisição do conhecimento necessário à proficiência em outras disciplinas. Terceira razão da crítica às vezes abusada que a norma culta inspira talvez advenha do nome antipático. Experimente substituí-lo, digamos, por português acadêmico (no sentido de "aprendido na escola"), e ensiná-lo como segunda língua (em relação ao dialeto trazido de casa), com precauções como evitar correções em classe, para não humilhar o aluno principiante perante seus pares; melhor limitá-las à vistoria dos cadernos. O ensino desse português acadêmico pressuporia rigor na escrita, limitada tolerância gramatical e vocabular na fala, mas liberdade ilimitada na prosódia: afinal, por que desbotar o colorido de pronúncia e entonação dos falares regionais do Brasil? ALDO PEREIRA é ex-editorialista e colaborador especial da Folha. E-mail: aldopereira.argumento@uol.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Antonio Carlos C. Ronca, Francisco Aparecido Cordão e Nilma Gomes: A questão étnico-racial na educação do país Próximo Texto: Painel do Leitor Índice | Comunicar Erros |
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