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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

De Porto Alegre a Davos

MARCO AURÉLIO GARCIA

Menos de um mês após o início do novo governo, tornam-se cada vez mais visíveis as mudanças na política externa brasileira.
Em Quito, por ocasião da posse do presidente Lúcio Gutiérrez, o Itamaraty logrou uma importante vitória com a constituição do Grupo de Amigos da Venezuela, que terá como função contribuir para uma solução pacífica, constitucional e negociada do grave conflito que sacode o país.
Os presidentes do Chile, da Colômbia, do Peru e da Bolívia, além da ministra das Relações Exteriores equatoriana e do secretário-geral da OEA, presentes à reunião, reconheceram e saudaram a iniciativa do governo brasileiro.
Falando aos jornalistas ao lado do ministro Celso Amorim, no Equador, Lula explicitou o lugar privilegiado que a América do Sul terá em nossa política externa -não só no plano da retórica, como no passado, mas sobretudo no das ações.
A ênfase sul-americana da nova política externa brasileira foi reiterada por Lula em um de seus discursos mais recentes, em Curitiba, há poucos dias.
O presidente foi claro: a liderança que se pede que o Brasil exerça no subcontinente será exercida. Mas ela não pode se confundir com arrogância, com desejo de hegemonia. Em vez disso, ela deve supor efetiva capacidade de articulação e generosidade.
A necessidade de explicitar o novo lugar que o Brasil pode e deve ocupar no mundo levou Lula, mais uma vez, a Porto Alegre, ao Fórum Social Mundial. Hoje ele falará em Davos.
Houve os que criticaram sua decisão de ir ao Fórum Econômico Mundial, uma instituição decadente, segundo alguns, à qual Lula estaria dando sobrevida. Ele está em Davos na condição de presidente de todos os brasileiros, e é claro que, essencialmente, fará lá o mesmo discurso que fez em Porto Alegre.
No Fórum Social Mundial, reencontrou muitos de seus velhos amigos e companheiros de luta contra o conservadorismo econômico, de sinistros desdobramentos sociais e políticos no mundo, nos últimos 15 anos, e reafirmou seu compromisso com os princípios que abraçou desde quando se iniciou na luta sindical, nos anos 70, e ajudou a construir o Partido dos Trabalhadores.



O presidente foi claro: a liderança que se pede que o Brasil exerça no subcontinente será exercida



Em Davos, falará para uma platéia composta por homens que têm enorme poder de decisão sobre os destinos da economia mundial. Mas, diferentemente do ocorrido alguns anos atrás, esses empresários não têm muito a celebrar.
O modelo que propugnaram para os países emergentes, principalmente para a América Latina, fracassou. Os ícones de Davos no continente -Collor, Salinas, Fujimori e tantos outros- foram varridos da política e transferidos para as páginas policiais do noticiário jornalístico.
Davos reúne hoje as perplexidades de um mundo ameaçado pela recessão e por uma insensata guerra, com consequências nefastas para o conjunto da economia mundial, inclusive -e sobretudo- para nossos planos de reconstrução do país.
Em um fórum que anuncia reunir-se sob o signo da "confiança", Lula denunciará a desconfiança dos especuladores, que, com seus ataques contra moedas nacionais ou com absurdas elevações de suas "taxas de risco", terminam por minar o esforço de construção econômica de todo um povo.
Como presidente de um povo que dá extraordinárias manifestações de confiança em si mesmo, Lula exporá as idéias centrais de seu "modelo", centrado no enfrentamento das questões sociais -fome, analfabetismo, crise da saúde e da habitação, entre tantas outras marcas da exclusão.
Essa prioridade dada às questões sociais não deve ser entendida exclusivamente, nem essencialmente, como desencadeamento de ações emergenciais de enfrentamento da miséria e da pobreza, ainda que medidas compensatórias se imponham.
A escolha do social como elemento estruturante da nova economia reflete a preocupação de dar início a um ciclo virtuoso de desenvolvimento que retome as altas taxas de crescimento de décadas atrás sem reproduzir a concentração de renda do passado, menos ainda a concentração de poder que alimentou o autoritarismo e/ou as ditaduras que nos assolaram.
Lula dirá, em Davos, que, atualmente, um outro Brasil está sendo possível -a partir da decisão soberana do povo. Isso pode significar que, amanhã, um outro mundo seja possível, como vêm repetindo aqueles que se reúnem há três anos em Porto Alegre.
Basta que a esperança possa vencer o medo.

Marco Aurélio Garcia, 61, é assessor especial de Política Externa da Presidência da República e professor licenciado do departamento de história da Unicamp.


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