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TENDÊNCIAS/DEBATES
Dosar o gás para não perder o fôlego
EDUARDO PEREIRA DE CARVALHO
Energia é a palavra-chave na definição da nova ordem econômica
mundial do século 21. Estará bem posicionado quem conseguir independência em relação às fontes fósseis e se apresentar como potencial supridor das necessidades energéticas do planeta.
Na reunião da ONU realizada na Alemanha, em 2001, para dar seqüência às
discussões ambientais ligadas ao Protocolo de Kyoto ficou decidido, entre outras coisas, que "todos os países se comprometem a reduzir e eliminar gradualmente distorções do mercado (incentivos, subsídios etc.) que favoreçam o uso
de fontes e atividades geradoras de efeito estufa, adotar medidas que assegurem que os preços nacionais dos recursos energéticos reflitam a plena realidade do mercado e suas externalidades,
adotar medidas e contribuir para o
abandono do uso energético dos recursos fósseis".
Independentemente do protocolo,
existe uma visão hegemônica que norteará a nova ordem econômica mundial
deste século. E aí é que entra a possibilidade de o Brasil se tornar "player" privilegiado, na condição de detentor de
uma das matrizes de energia mais limpas do planeta.
Temos 95% da nossa eletricidade gerada por fontes hídricas e somos o único
país do mundo que utiliza em larga escala um combustível de biomassa álcool
para substituir derivados de petróleo
fóssil e importado (o álcool é utilizado
no carro a álcool ou no novo carro multicombustível e na mistura com a gasolina, na proporção de 25%).
Nosso modelo contém variáveis importantes do desenvolvimento sustentado: segurança energética, economia
de divisas, geração de emprego e renda
de forma descentralizada e respeito ao
meio ambiente, com rígido controle da
poluição e planejamento da utilização
dos recursos naturais.
É claro que não se pode ignorar ou
deixar de estimular novas fontes de
energia. É salutar que o país desenvolva
o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia (Proinfa), no qual
se inclui a co-geração de energia elétrica
a partir da biomassa, e que se desenhe
uma política de utilização do gás natural
de suas reservas e do contrato firmado
com a Bolívia.
O que não se pode admitir é que se suje a nossa matriz energética. Preocupa a
política em relação ao gás natural: vocacionado para substituir o óleo combustível e o diesel na indústria e no transporte pesado, ele vem sendo desviado
para a utilização em veículos leves, com
preços artificiais e tratamento tributário
privilegiado, injustificável para um
combustível fóssil.
Preocupa a política em relação ao gás natural. Ele vem sendo desviado para a utilização em veículos leves, com preços artificiais
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Fala-se que o gás é ambientalmente
limpo, o que é uma falácia. Na verdade,
o gás é limpo se falarmos de emissão de
particulados (fuligem), e aí ele faz diferença na substituição do óleo combustível e do diesel. Em veículos leves ele causa mais poluição com a conversão irregular de modelos a gasolina ou a álcool
com kits baratos, fora dos padrões estabelecidos pelo Ibama. Levantamento da
Cetesb (agência ambiental paulista)
mostra que, de 21 marcas de kits de conversão testadas, somente quatro estavam dentro dos padrões ambientais. É
bom lembrar que uma adaptação fora
do padrão resulta em maior emissão de
poluentes como o monóxido de carbono -uma adaptação descuidada representa emissão de 3,95 g/km, em comparação com 1,6 g/km de um veículo a gasolina com 25% de álcool. No caso da
poluição global, o problema é maior,
pois o metano, principal componente
do gás natural, é um importante causador do efeito estufa.
No caso brasileiro, substituir carro a
álcool e a gasolina por gás é uma decisão
equivocada. Estima-se que no último
ano o gás natural veicular (GNV) tenha
substituído cerca de um 1 bilhão de litros de álcool, o que significa desperdício de nosso diferencial ambiental,
queima de divisas e redução de empregos. Quanto à artificialidade de preços
do GNV, uma análise da política tarifária em São Paulo mostra que ela favorece o carro em detrimento do fogão e da
indústria. Um metro cúbico de gás natural para a indústria e o pequeno consumidor custa, respectivamente, 1,91 e
6,3 vezes mais do que o de uso veicular.
A questão reveste-se de gravidade,
mas é alentador o fato de ser discutida
no âmbito do governo federal. Recente
documento de um grupo de trabalho da
Câmara Setorial Sucroalcooleira do Ministério da Agricultura chamou a atenção para uma série de distorções envolvendo o gás para uso em veículos. Assim, o grupo recomenda: implementação da cobrança complementar do IPI
para os veículos a álcool convertidos para GNV, adoção de carga fiscal equivalente à da gasolina para o GNV, certificação obrigatória de conformidade ambiental para veículos convertidos ao
GNV e tratamento isonômico na concessão de financiamentos por agências
oficiais para o uso de GNV e álcool hidratado.
Nada contra o gás natural. Bem utilizado, ele pode reforçar a segurança
energética e a característica limpa da
matriz brasileira. Usá-lo em veículos leves, porém, é caminho certo para envenenar essa matriz e retirar do Brasil o fôlego para concretizar sua condição potencial de "player" na nova ordem econômica mundial que ora se desenha.
Eduardo Pereira de Carvalho, 65, economista,
é presidente da Unica (União da Agroindústria
Canavieira de São Paulo).
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