São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Dosar o gás para não perder o fôlego

EDUARDO PEREIRA DE CARVALHO

Energia é a palavra-chave na definição da nova ordem econômica mundial do século 21. Estará bem posicionado quem conseguir independência em relação às fontes fósseis e se apresentar como potencial supridor das necessidades energéticas do planeta.
Na reunião da ONU realizada na Alemanha, em 2001, para dar seqüência às discussões ambientais ligadas ao Protocolo de Kyoto ficou decidido, entre outras coisas, que "todos os países se comprometem a reduzir e eliminar gradualmente distorções do mercado (incentivos, subsídios etc.) que favoreçam o uso de fontes e atividades geradoras de efeito estufa, adotar medidas que assegurem que os preços nacionais dos recursos energéticos reflitam a plena realidade do mercado e suas externalidades, adotar medidas e contribuir para o abandono do uso energético dos recursos fósseis".
Independentemente do protocolo, existe uma visão hegemônica que norteará a nova ordem econômica mundial deste século. E aí é que entra a possibilidade de o Brasil se tornar "player" privilegiado, na condição de detentor de uma das matrizes de energia mais limpas do planeta.
Temos 95% da nossa eletricidade gerada por fontes hídricas e somos o único país do mundo que utiliza em larga escala um combustível de biomassa álcool para substituir derivados de petróleo fóssil e importado (o álcool é utilizado no carro a álcool ou no novo carro multicombustível e na mistura com a gasolina, na proporção de 25%).
Nosso modelo contém variáveis importantes do desenvolvimento sustentado: segurança energética, economia de divisas, geração de emprego e renda de forma descentralizada e respeito ao meio ambiente, com rígido controle da poluição e planejamento da utilização dos recursos naturais.
É claro que não se pode ignorar ou deixar de estimular novas fontes de energia. É salutar que o país desenvolva o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia (Proinfa), no qual se inclui a co-geração de energia elétrica a partir da biomassa, e que se desenhe uma política de utilização do gás natural de suas reservas e do contrato firmado com a Bolívia.
O que não se pode admitir é que se suje a nossa matriz energética. Preocupa a política em relação ao gás natural: vocacionado para substituir o óleo combustível e o diesel na indústria e no transporte pesado, ele vem sendo desviado para a utilização em veículos leves, com preços artificiais e tratamento tributário privilegiado, injustificável para um combustível fóssil.



Preocupa a política em relação ao gás natural. Ele vem sendo desviado para a utilização em veículos leves, com preços artificiais
Fala-se que o gás é ambientalmente limpo, o que é uma falácia. Na verdade, o gás é limpo se falarmos de emissão de particulados (fuligem), e aí ele faz diferença na substituição do óleo combustível e do diesel. Em veículos leves ele causa mais poluição com a conversão irregular de modelos a gasolina ou a álcool com kits baratos, fora dos padrões estabelecidos pelo Ibama. Levantamento da Cetesb (agência ambiental paulista) mostra que, de 21 marcas de kits de conversão testadas, somente quatro estavam dentro dos padrões ambientais. É bom lembrar que uma adaptação fora do padrão resulta em maior emissão de poluentes como o monóxido de carbono -uma adaptação descuidada representa emissão de 3,95 g/km, em comparação com 1,6 g/km de um veículo a gasolina com 25% de álcool. No caso da poluição global, o problema é maior, pois o metano, principal componente do gás natural, é um importante causador do efeito estufa.
No caso brasileiro, substituir carro a álcool e a gasolina por gás é uma decisão equivocada. Estima-se que no último ano o gás natural veicular (GNV) tenha substituído cerca de um 1 bilhão de litros de álcool, o que significa desperdício de nosso diferencial ambiental, queima de divisas e redução de empregos. Quanto à artificialidade de preços do GNV, uma análise da política tarifária em São Paulo mostra que ela favorece o carro em detrimento do fogão e da indústria. Um metro cúbico de gás natural para a indústria e o pequeno consumidor custa, respectivamente, 1,91 e 6,3 vezes mais do que o de uso veicular.
A questão reveste-se de gravidade, mas é alentador o fato de ser discutida no âmbito do governo federal. Recente documento de um grupo de trabalho da Câmara Setorial Sucroalcooleira do Ministério da Agricultura chamou a atenção para uma série de distorções envolvendo o gás para uso em veículos. Assim, o grupo recomenda: implementação da cobrança complementar do IPI para os veículos a álcool convertidos para GNV, adoção de carga fiscal equivalente à da gasolina para o GNV, certificação obrigatória de conformidade ambiental para veículos convertidos ao GNV e tratamento isonômico na concessão de financiamentos por agências oficiais para o uso de GNV e álcool hidratado.
Nada contra o gás natural. Bem utilizado, ele pode reforçar a segurança energética e a característica limpa da matriz brasileira. Usá-lo em veículos leves, porém, é caminho certo para envenenar essa matriz e retirar do Brasil o fôlego para concretizar sua condição potencial de "player" na nova ordem econômica mundial que ora se desenha.


Eduardo Pereira de Carvalho, 65, economista, é presidente da Unica (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo).



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