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São Paulo, quarta-feira, 26 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O pêndulo de Lula

RICARDO ANTUNES

Se em 1989 Lula e as esquerdas tiveram uma enorme chance de vitória, foi em 2002 que, finalmente, ela ocorreu, depois de um período de grande desertificação social e econômica do Brasil, consequência da era FHC. Foi, neste sentido, uma vitória tardia e em um contexto que combina elementos contraditórios, favoráveis e desfavoráveis. Comecemos pelos últimos.
Se em 1989 vivenciou-se a culminância de um forte ciclo de lutas e avanços sociais, iniciado com o nascimento do PT, da CUT e do MST, hoje o quadro é bastante diferente, pois a última década foi de relativo recuo dos embates sociais. Foi inclusive esse contexto relativamente adverso que levou o PT a fazer uma série de concessões, inimagináveis em 1989 e agora tidas como necessárias.
Todo esse quadro se torna mais complexo quando sabemos que o contexto econômico e político internacional é de crise global acentuada, com a ampliação da política destrutiva dos EUA e sua arrogância imperial, de que a política de guerra contra o Iraque é exemplar. Com um contexto econômico internacional desfavorável, os limites encontrados pelo PT de Lula são, portanto, de grande envergadura.
Mas há, por outra parte, elementos novos e favoráveis, neste novo ciclo (e século) que se inicia. Ampliaram-se as lutas sociais antiglobalização e antimundialização, desde Seattle até o recente Fórum Social de Porto Alegre, aumentando os descontentamentos com a "mercadorização" do mundo, sua superfluidade, seu caráter involucral e seu sentido agudamente destrutivo. Ainda que esses movimentos tenham sentido o golpe após a reação norte-americana ao atentado de 11 de setembro, o mote "um outro mundo é possível" encontra muita força e propulsão social em várias partes do mundo.
Basta olhar o continente latino-americano para ver que ele transita da letargia neoliberalizante das duas últimas décadas para as rebeliões e explosões sociais na Argentina, para as recentes vitórias eleitorais e políticas no Brasil e no Equador, para a forte resistência popular antigolpista na Venezuela, dentre vários outros exemplos. As recentes greves gerais dos italianos e espanhóis, no primeiro semestre de 2002, são outros excelentes exemplos de ação dos trabalhadores e trabalhadoras da União Européia contra a destruição e precarização dos direitos sociais e do trabalho.


Passada sua fase de encantamento pós-eleitoral, o governo terá que mostrar de que lado está


É nesse contexto, que combina, contraditoriamente, situações adversas e positivas, que o governo Lula buscará seu caminho. Vitorioso eleitoralmente, o PT e as esquerdas terão que redesenhar sua opção e buscar uma nova rota para o Brasil, tendo como centro a nova morfologia do trabalho, em seu caráter compósito e multifacetado, buscando recuperar seu sentido de dignidade e de humanidade, abandonados nestes últimos tempos.
Talvez pudéssemos, então, dizer que agora, sim, passa a valer a metáfora do pêndulo, o que, aliás, nunca ocorreu no período FHC, cujo (des)governo esteve sempre junto dos salões financeiros. Com Lula, os capitais transnacionais (com a aquiescência dócil do que resta dos capitais nativos) procurarão puxar o pêndulo sempre para o centro e a direita, sob a batuta do FMI e do Banco Mundial. No outro pólo, o universo heterogêneo e polissêmico do mundo do trabalho, através de suas ações concretas, de seus sindicatos, movimentos sociais urbanos e rurais, partidos e movimentos de esquerda, deverão respaldar, amparar, impulsionar e mesmo exigir do governo Lula a elaboração de políticas que garantam e ampliem os direitos dos trabalhadores contra a lógica destrutiva hoje vigente.
Podemos ilustrar esse sentido pendular com alguns exemplos: a política econômica, que começa de modo pífio e continuista, tão aplaudida pelo sistema financeiro e seus representantes; a política externa, particularmente no contexto latino-americano, que se diferencia positivamente da fase anódina e falante de FHC; a batalha da previdência, que começa mal e atabalhoadamente, prisioneira do engodo neoliberal; o combate à fome, que oscila entre a justa diagnose da barbárie e o limitadíssimo remédio assistencial; um ministério que é a soma dos contrários...
E, ainda, no giro aéreo de Lula, do Fórum Social de Porto Alegre ao "meeting" dos especuladores de Davos, levando-o a sonhar com a construção de uma ponte social intercontinental para a qual não há engenharia possível.
Um último exemplo, da legislação trabalhista, pode ilustrar ainda melhor a disputa presente no governo Lula: os capitais globais vêm exigindo persistentemente, dos diversos governos nacionais, a flexibilização da legislação do trabalho. O governo Lula cederá às exigências dos capitais, precarizando ainda mais a nossa classe trabalhadora, ou, ao contrário, avançará em direção a um Código do Trabalho que preserve e avance na conquista de novos direitos sociais do trabalho?
Passada sua fase de encantamento pós-eleitoral, com a volta das adversidades e confrontações de fundo, o governo terá que mostrar de que lado está. As forças econômicas, sociais e políticas em disputa tenderão a puxá-lo para lados distintos. Ele pode também estancar no meio -mas, para isso, não era necessário derrotar eleitoralmente o pomposo tucanato. Está se iniciando, então, o grande teste do governo do PT. E esse será o pêndulo de Lula.

Ricardo Antunes, 49, é professor titular de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Foi pesquisador visitante na Universidade de Sussex (Inglaterra). É autor de "Os Sentidos do Trabalho" (ed. Boitempo).


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