São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2010

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Ainda sobre as férias dos juízes

FLÁVIO LANDI e GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO


Reduzir as férias dos juízes sem a correspondente limitação de suas horas de atividade judicante terá duas consequências prováveis


EM EDITORIAL de 14/3, esta Folha exaltou a proposta de redução do período de férias dos juízes brasileiros. A esse respeito, cabe a ponderação desapaixonada. O Brasil possui cerca de 16 mil juízes. Em 2008, ingressaram no Judiciário 25 milhões de processos novos. São cerca de 1.560 novos autos para cada juiz, quase 4,5 novos processos por dia (sem desconto, no divisor, para efeito de férias, feriados ou finais de semana). E aqui desconsidero os processos que já tramitavam pela Justiça: 70 milhões em 2008, dos quais 30 milhões foram encerrados.
Nesse contexto, não será retórico dizer que muitos juízes trabalham bem além dos limites legais que a Constituição reservou às "demais categorias de trabalhadores", como pontuou o editorial. Em particular na Justiça do Trabalho, os juízes se dividem entre o expediente nos fóruns, que pode se estender das 6h às 20h (CLT, artigo 770), e as sentenças, ora redigidas em gabinete, ora em casa.
Se o padrão constitucional de oito horas/dia e 44 horas/semana se aplicasse a juízes, União e Estados desembolsariam milhões com horas extras realizadas dentro das unidades judiciárias ou fora delas.
O mesmo se diga das próprias férias, amiúde sacrificadas para a prolação de sentenças que não puderam ser finalizadas nos dias úteis. Isso é ainda mais verdadeiro a partir da emenda constitucional 45, com a criação do CNJ e o consequente estabelecimento de metas nacionais de produtividade, que vêm sendo cumpridas a duras penas.
Também nesta Folha, Joaquim Falcão criticou os recessos judiciais e o fato de alguns tribunais indenizarem férias não gozadas. Ora, não se pode cortar a cabeça porque os pés vão mal. Que se estabeleça a proibição geral da indenização de férias no setor público. Que se uniformize e racionalize, nacionalmente, o recesso forense. Mas nada disso deve interferir com o direito às férias, que apenas compensa os rigores de um serviço público cuja prestação não conhece limites horários ou espaciais.
Para o desprazer de suas famílias, juízes seguem sendo juízes em suas casas. As férias dilatadas chegam a ser um imperativo de saúde profissional, donde a crítica oportuna da Anamatra à possibilidade de indenização de períodos de férias na ativa.
Anda mal, por fim, a comparação com outros países. A situação dos juízes portugueses -que têm até mesmo um sindicato (ASJP)- em nada se compara com a dos juízes brasileiros. Em 2008, os tribunais portugueses (primeiro e segundo graus) receberam menos que 750 mil processos novos, muito aquém dos nossos 25 milhões. A maioria das comarcas portuguesas (54%) tem média de processos entrados inferior a mil/ano, algo bem diverso da nossa realidade.
Na Noruega, entre 1997 e 1999, um projeto propôs um número mínimo de cinco juízes por unidade de primeira instância. Tal quadro é impensável no nosso contexto. As condições são essencialmente discrepantes.
Note-se que, no Brasil, o poder público tem buscado criar parâmetros do que seria a estrutura mínima adequada para atendimento à população que busca o Poder Judiciário. Em 2008, o o Conselho Superior da Justiça do Trabalho preparou longo estudo para conhecer a realidade dessa Justiça, que resultou na resolução 53.
Entre os aspectos propostos está a criação de uma nova vara do trabalho toda vez que a quantidade anual de processos, na média trienal, for igual ou superior a 1.500 por unidade. Na 15ª região do Trabalho, seriam pelo menos 70 novas varas, com dois juízes para cada uma. Mas nem sequer projeto de lei foi elaborado.
Caso se reduzam as férias dos juízes sem a correspondente limitação de suas horas de atividade judicante, duas serão as consequências prováveis. No curto prazo, o recrudescimento dos quadros atuais de estresse e patologias profissionais, com aumento do absenteísmo e prejuízos à duração razoável do tempo processual. No médio e longo prazos, a perda de qualidade nas fileiras do Judiciário. Os melhores quadros migrarão massivamente para a advocacia ou para outras carreiras de Estado.
A solução para a morosidade da Justiça -como outrora reconheceu a comissão de reforma do Judiciário sueco em 1995- está na "dimensão suficiente", com especialização orgânica, minimização do custo médio por processo e dotação de estruturas com flexibilidade gerencial bastante para assegurar andamento a processos nos casos de afastamentos, sem sobrecarregar os agentes públicos em atividade. Mais e melhores juízes. Jamais o contrário.


FLÁVIO LANDI, mestre em direito do trabalho pela USP, juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Americana (SP), é presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região (Amatra 15).

GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO, professor do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da USP, juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), é vice-presidente da Amatra 15.

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