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As terras indígenas são uma ameaça à soberania nacional?
NÃO
A ameaça é outra
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA e ANA VALÉRIA ARAÚJO
DE NOVO esse surrado espantalho e, agora, em benefício de
seis poderosos arrozeiros de
Roraima instalados de má-fé em terra
indígena? Que compraram benfeitorias dos que saíam dessa terra quando
ela estava sendo reconhecida? Que
gozam de isenção fiscal de um Estado
fronteiriço que se sustenta à custa de
dinheiro federal? Que se insurgiram
violentamente contra o Executivo e o
Judiciário? Que são, com quem os
sustenta politicamente, uma verdadeira ameaça à soberania nacional?
A diversidade dos povos indígenas é
patrimônio do Brasil. Nosso país é
megadiverso em mais de um sentido,
em riqueza biológica e em riqueza
cultural. Por isso a Constituição garante as terras necessárias aos índios
para reprodução física e social. Isto é,
os padrões culturais de sociabilidade
e exploração de recursos têm de poder ser mantidos, e a continuidade da
terra indígena é condição para tanto.
Terras indígenas são bens da
União, inalienáveis e indisponíveis, e
os índios têm a posse e o usufruto delas. Por isso o Estado pode ter sobre
essas terras uma vigilância mais ampla do que a que pode exercer sobre
terras privadas. Além disso, o Exército deve estar presente em todas as
áreas de fronteiras, indígenas ou não.
O então ministro da Justiça Nelson
Jobim, em 1995, despachou favoravelmente à declaração de uma extensa área fronteiriça como sendo de
posse permanente indígena, deixando claro que terra indígena e presença
do Exército não se excluem.
Historicamente, a posse indígena
assegurou ao Brasil o desenho de algumas de suas fronteiras internacionais. Roraima, cujo território há cem
anos foi disputado entre o Brasil e a
Inglaterra, é um exemplo. Joaquim
Nabuco, que defendeu a posição brasileira, argumentou justamente a presença indígena nas terras hoje conhecidas como Raposa/Serra do Sol para
fundamentar o direito brasileiro.
Hoje, a vigilância e a atuação dos ashaninka do Acre contra a invasão de
madeireiros do Peru têm sido essencial na defesa de nossas fronteiras.
Vem então outro surrado espantalho: ONGs internacionais ou com ligações internacionais. Somos inteiramente favoráveis a que se separe o
joio do trigo. Se há indícios, que se investiguem, mas uma teoria conspiratória generalizada lembra o protocolo
dos sábios de Sião: serve apenas para
justificar o arrepio da ordem legal.
Pois a verdadeira questão é o
(des)respeito ao Estado de Direito:
Raposa/Serra do Sol foi identificada,
demarcada e homologada a muito
custo durante três décadas e sob procedimento inteiramente legal.
Os ocupantes da Raposa/Serra do
Sol tiveram desde a demarcação em
1998 ocasião de contestá-la amplamente. Quando saiu, cumprindo a lei,
uma primeira leva de ocupantes não-indígenas, os arrozeiros compraram
algumas de suas benfeitorias. A Funai
depositou em juízo o valor das indenizações para os últimos 53 ocupantes,
que se recusaram a recebê-las -entre
eles estão os arrozeiros.
Imagens de satélite demonstram
que, em 1992, as plantações de arroz
ocupavam cerca de 2.000 ha, passando para 15 mil em 2005, ano da homologação pelo presidente da República.
Os arrozeiros expandiram o cultivo
mesmo sabendo que eram terras indígenas e desafiando o governo federal.
Alega-se que as terras indígenas em
Roraima, que correspondem a 46%
de sua extensão, ameaçam inviabilizar o Estado. Porém, os 54% restantes
equivalem à soma da extensão de Rio
de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas,
ocupados por menos de 400 mil habitantes, concentrados na capital, Boa
Vista. Roraima depende até hoje da
remessa de recursos federais para a
sua manutenção, não tendo conseguido estabelecer uma base de arrecadação local que viabilize o Estado.
No entanto, o governo do Estado,
em 2003, concedeu aos rizicultores
isenção fiscal até o ano de 2018. Sem
projeto de desenvolvimento definido
e instituições republicanas consolidadas, o Estado propicia o enriquecimento ilegal, sendo os custos sociais e
ambientais arcados pelo país inteiro.
Quem ameaça a soberania nacional?
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA, 64, é professora titular de antropologia da Universidade de Chicago (EUA) e membro da Academia Brasileira de Ciências.
ANA VALÉRIA ARAÚJO, 44, é advogada, mestre em direito internacional pelo Washington College of Law (EUA) e coordenadora-executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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