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DEMÉTRIO MAGNOLI
Vergonha
"Tendo o anterior governo
haitiano abolido as Forças Armadas e as forças policiais, o povo indefeso conta unicamente com a proteção das tropas estrangeiras." Foi assim
que, em outubro passado, o enviado
especial do Itamaraty Ricardo Seitenfus justificou a presença das forças
brasileiras no Haiti. Nas suas palavras,
"pela primeira vez na história haitiana
há uma aceitação tácita da presença
estrangeira", pois o país caribenho enfrenta uma situação marcada pela
"simples ausência de Estado".
Seitenfus seguia à risca o roteiro que
lhe foi atribuído de enganar a opinião
pública brasileira. O Haiti tem um Estado, que é uma ditadura corrupta dedicada a libertar da prisão figuras sanguinárias e a encarcerar opositores a
fim de assegurar a perpetuação do seu
poder. O ex-ditador Raoul Cédras e
seus colaboradores Philippe Biamby,
Michel François, Emmanuel "Toto"
Constant e Jean Tatoune, condenados
à prisão perpétua em processo judicial
público por um massacre de opositores ocorrido em 1992, foram postos
em liberdade. Em compensação,
Yvon Neptune, o último primeiro-ministro do governo de Jean-Bertrand
Aristide, deposto pela intervenção
americana, está encarcerado há 11 meses sem acusação ou audiência judicial. Em situação similar encontram-se o ex-ministro Jocelerme Pivert, a
cantora So Ann e centenas de ativistas
do partido Lavalas, de Aristide.
O Estado haitiano conta com uma
polícia assassina que, diariamente, invade favelas atirando contra seguidores do Lavalas. Essa ditadura não tem
um exército nacional, ao menos por
enquanto. As forças da ONU, sob comando brasileiro, desempenham a
função de exército substituto, oferecendo suporte militar para as operações de repressão policial e de perseguição judicial. James Cavallaro, da
Escola de Direito de Harvard, apresentou às autoridades brasileiras, em
março, um relatório das violações de
direitos humanos no Haiti. "É uma
acusação irresponsável e leviana, com
objetivo de criar espuma", rebateu na
época Marco Aurélio Garcia, o assessor internacional de Lula.
Seitenfus e Garcia, assim como seus
superiores no Itamaraty e no Palácio
do Planalto, são cúmplices ativos dessas violações de direitos humanos.
Quando o primeiro visitou o Haiti,
Neptune já estava preso havia meses.
Quando o segundo descartou o relatório de Cavallaro, Neptune realizava
uma primeira greve de fome, exigindo
ser acusado ou libertado. A segunda
greve de fome, iniciada em meados de
abril, conseguiu a atenção de Thierry
Fagard, o encarregado de direitos humanos da missão da ONU, que denunciou as prisões ilegais do regime
haitiano. Ao que parece, o "irresponsável" Fagard juntou-se ao "leviano"
Cavallaro "com o objetivo de criar espuma".
Sob o silêncio sepulcral da mídia, e
amparado pelo desinteresse olímpico
dos congressistas, que se ocupam apenas em transacionar nomeações, o governo brasileiro cumpre no Haiti o papel de pistoleiro de aluguel dos Estados Unidos. Mas a missão afunda aos
poucos, junto com a ditadura haitiana, que parece incapaz até mesmo de
preparar uma farsa eleitoral tolerável.
Uma reunião recente de vice-chanceleres do Brasil, da Argentina, do
Uruguai e do Chile discutiu a hipótese
de encerrar a operação militar no Caribe. O pretexto, para consumo público, seria a exigüidade dos recursos liberados pela ONU a projetos sociais e
de desenvolvimento no Haiti. Humanitário, não?
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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