São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Capitulação
DEMÉTRIO MAGNOLI
Os subsídios aos agricultores, por sua vez, enquadram-se na disputa global entre os EUA e a União Européia. No ano de 2000, os agricultores americanos receberam em subsídios mais de US$ 30 bilhões, o equivalente a cerca de 60% da renda líquida gerada por todo o setor agrícola. Os produtores de soja receberam subsídios de quase US$ 3 bilhões, um valor igual a dois terços de todas as exportações brasileiras de soja. Desde o lançamento do projeto da Alca, em 1995, o Brasil orientou a sua posição negociadora para bombardear os dois pilares do protecionismo americano, reivindicando a limitação do uso das leis antidumping e um corte profundo nos subsídios agrícolas. Essa trincheira política serviria para promover a unidade do Mercosul e, mais adiante, a da América do Sul. A proposta, veiculada nos últimos meses, de adiar o prazo das negociações para 2007 representava uma reação à oferta inicial de Washington, que remete a discussão desses temas para a OMC. No encontro com Bush, Lula promoveu um atentado devastador contra a casamata negociadora brasileira. Antes da assinatura dos termos oficiais de capitulação, os diplomatas brasileiros e americanos costuraram a fórmula de uma "Alca light", pela qual os temas em litígio ficariam de fora do acordo. Essa fórmula é um frágil disfarce da decisão de concluir a Alca sem tocar nos subsídios e leis antidumping dos EUA. O caminho foi pavimentado para a Alca dos sonhos de Washington. As negociações se concentram agora na redução de tarifas industriais, o que equivale, essencialmente, a uma abertura unilateral dos mercados do Brasil e da Argentina. No quadro da OMC, a discussão do comércio agrícola não oferece problemas para os EUA, que podem continuar a condicionar a redução dos seus subsídios à improvável reforma da política agrícola comum da União Européia. De quebra, o intocado arsenal antidumping permite que as concessões tarifárias americanas na Alca sejam "compensadas" por taxas e cotas punitivas aplicadas unilateralmente. O comunicado conjunto é um documento de capitulação exemplar. As frases genéricas refletem algumas posições brasileiras. Todos os compromissos específicos condensam as posições dos EUA. É um texto que deveria ser indicado como estudo de caso no curso de formação de diplomatas do Itamaraty. Na prática, os compromissos assinados implicam uma reviravolta regressiva na posição negociadora brasileira. No quadro da Alca, o Brasil fica condenado a enrolar as suas bandeiras políticas antiprotecionistas, que têm ressonância internacional, e a empreender discussões meramente técnicas sobre grupos de tarifas de importação e cronogramas de abertura de mercados. Nesse terreno sem princípios, a unidade do Mercosul e da América do Sul torna-se uma quimera retórica, pois o que vale são os interesses seletivos e particulares de cada país. A embaixadora americana Donna Hrinak declarou-se "impressionada com a coincidência de pontos de vista" entre Lula e Bush, definindo o encontro como "ótimo". Lula voltou exultante de Washington, gabando-se de que, ao lado de Bush, vai "surpreender o mundo em termos do relacionamento entre o Brasil e os EUA". O chanceler Celso Amorim classificou a visita como "histórica". Claro que todos eles têm razão. Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional". Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Werner Becker: Uma questão meramente jurídica Índice |
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