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São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Capitulação

DEMÉTRIO MAGNOLI

Lula voltou de Washington mais falastrão do que nunca. Em discurso na CNI (Confederação Nacional da Indústria), trombeteou que ninguém -"cara feia", "Congresso Nacional" ou "Poder Judiciário"- o impedirá de fazer "este país ocupar o lugar de destaque que ele nunca deveria ter deixado de ocupar". A única exceção seria uma eventual intervenção divina contra o Brasil. A metralhadora giratória voltou-se também na direção da diplomacia de FHC: "Eu acho que nós já conseguimos, em seis meses, do ponto de vista de política internacional, aquilo que muitos que estudaram a vida inteira não conseguiram fazer".
O encontro de Lula com Bush representa, de fato, um marco. Em poucas horas, o presidente brasileiro derrubou todo o edifício de argumentos construído pelo Itamaraty nos últimos sete anos, capitulando às posições dos EUA sobre a Alca. A capitulação foi expressa por escrito num comunicado conjunto assinado pelos dois presidentes.
O Brasil comprometeu-se com "a conclusão exitosa das negociações para uma Área de Livre Comércio das Américas até janeiro de 2005", rendendo-se ao prazo exigido por Washington e desistindo, sem luta, da proposta de extensão das negociações até 2007. Em seguida, o comunicado conectou o combate ao protecionismo às negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio), exatamente como queria a Casa Branca. Assim, em três parágrafos, Lula jogou no lixo toda a estratégia política elaborada para a grande batalha da Alca e conferiu ao Brasil uma posição negociadora similar à de Honduras.
Os EUA têm um sofisticado sistema de protecionismo comercial. Esse sistema não se estrutura em torno de tarifas de importação, que estão entre as menores do mundo, mas de um arsenal legislativo antidumping e de impressionantes subsídios à agricultura. As leis antidumping, formalmente dirigidas contra a concorrência externa desleal, veiculam de fato os interesses de lobbies industriais incapazes de competir com eficiência. Elas propiciam a imposição, numa base unilateral e seletiva, de cotas de importação e tarifas "excepcionais" contra produtos estrangeiros. A siderurgia decrépita americana sobrevive sob o amparo dessas leis, que punem os produtores de aço da China, Coréia do Sul, Rússia e Brasil.


No encontro com Bush, Lula promoveu um atentado devastador contra a casamata negociadora brasileira


Os subsídios aos agricultores, por sua vez, enquadram-se na disputa global entre os EUA e a União Européia. No ano de 2000, os agricultores americanos receberam em subsídios mais de US$ 30 bilhões, o equivalente a cerca de 60% da renda líquida gerada por todo o setor agrícola. Os produtores de soja receberam subsídios de quase US$ 3 bilhões, um valor igual a dois terços de todas as exportações brasileiras de soja.
Desde o lançamento do projeto da Alca, em 1995, o Brasil orientou a sua posição negociadora para bombardear os dois pilares do protecionismo americano, reivindicando a limitação do uso das leis antidumping e um corte profundo nos subsídios agrícolas. Essa trincheira política serviria para promover a unidade do Mercosul e, mais adiante, a da América do Sul. A proposta, veiculada nos últimos meses, de adiar o prazo das negociações para 2007 representava uma reação à oferta inicial de Washington, que remete a discussão desses temas para a OMC.
No encontro com Bush, Lula promoveu um atentado devastador contra a casamata negociadora brasileira. Antes da assinatura dos termos oficiais de capitulação, os diplomatas brasileiros e americanos costuraram a fórmula de uma "Alca light", pela qual os temas em litígio ficariam de fora do acordo. Essa fórmula é um frágil disfarce da decisão de concluir a Alca sem tocar nos subsídios e leis antidumping dos EUA.
O caminho foi pavimentado para a Alca dos sonhos de Washington. As negociações se concentram agora na redução de tarifas industriais, o que equivale, essencialmente, a uma abertura unilateral dos mercados do Brasil e da Argentina. No quadro da OMC, a discussão do comércio agrícola não oferece problemas para os EUA, que podem continuar a condicionar a redução dos seus subsídios à improvável reforma da política agrícola comum da União Européia. De quebra, o intocado arsenal antidumping permite que as concessões tarifárias americanas na Alca sejam "compensadas" por taxas e cotas punitivas aplicadas unilateralmente.
O comunicado conjunto é um documento de capitulação exemplar. As frases genéricas refletem algumas posições brasileiras. Todos os compromissos específicos condensam as posições dos EUA. É um texto que deveria ser indicado como estudo de caso no curso de formação de diplomatas do Itamaraty.
Na prática, os compromissos assinados implicam uma reviravolta regressiva na posição negociadora brasileira. No quadro da Alca, o Brasil fica condenado a enrolar as suas bandeiras políticas antiprotecionistas, que têm ressonância internacional, e a empreender discussões meramente técnicas sobre grupos de tarifas de importação e cronogramas de abertura de mercados. Nesse terreno sem princípios, a unidade do Mercosul e da América do Sul torna-se uma quimera retórica, pois o que vale são os interesses seletivos e particulares de cada país.
A embaixadora americana Donna Hrinak declarou-se "impressionada com a coincidência de pontos de vista" entre Lula e Bush, definindo o encontro como "ótimo". Lula voltou exultante de Washington, gabando-se de que, ao lado de Bush, vai "surpreender o mundo em termos do relacionamento entre o Brasil e os EUA". O chanceler Celso Amorim classificou a visita como "histórica". Claro que todos eles têm razão.

Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional".


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