São Paulo, sexta-feira, 26 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A genômica e a complexidade da vida

ANDREW SIMPSON e ANAMARIA CAMARGO

Os seres vivos, para sobreviver e se reproduzir, dependem de uma infinidade de funções celulares e reações químicas interligadas. Estudar isoladamente essas funções e as moléculas biológicas a elas associadas é artificial, pois implica ignorar as interações simultâneas entre diferentes moléculas. Nesse contexto, o desenvolvimento de novas tecnologias que permitam o estudo de situações de alta complexidade é de crucial importância para entendermos a química da vida, que, por sua vez, serve de base para toda a medicina.
Esse é um fato que não pode ser ignorado quando se discute a oportunidade dos investimentos públicos em programas de pesquisa genômica, tema de editorial da Folha em 16 de julho (pág. A2), a propósito de entrevista concedida a este jornal pelo prof. Sérgio Ferreira.
As moléculas biológicas que compõem um organismo são produtos, diretos ou indiretos, de seus genes e, de maneira análoga, podemos concluir que os genes funcionam de forma interligada. Nenhum gene é capaz de funcionar isoladamente. Assim, para entendermos as funções de uma célula, temos que estudar todos os genes simultaneamente; e só assim poderemos entender o funcionamento de um organismo de forma adequada e completa.
O conjunto de genes de um organismo compõe o seu genoma, e a genômica é a ciência dedicada ao estudo de genomas. A genômica é uma área recente e extremamente dinâmica da biologia, pois, até pouco tempo atrás, os genes só podiam ser estudados isoladamente.
Grandes avanços científicos foram alcançados, com sucesso inquestionável, estudando-se genes isoladamente, porém alguns reflexos negativos dessa abordagem começam a aparecer. Como exemplo, podemos citar a discussão sobre os benefícios da reposição hormonal com estrógeno para aliviar os efeitos da menopausa. A reposição tem sido indicada na prática clínica, pois resultados iniciais comprovaram os efeitos positivos do hormônio na redução da osteoporose e demais sintomas associados à menopausa.
Mas o estrógeno -um esteróide produzido pela ação de um conjunto de genes do genoma humano- interage igualmente em outros processos fisiológicos, de forma complexa, causando vários efeitos colaterais; entre eles, aparentemente, o aumento do risco de câncer.
Nesse caso, especificamente, o estudo global da ação desse hormônio no conjunto de genes do genoma humano possibilitaria a previsão dos efeitos colaterais de uma maneira mais completa. Este fato, por sua vez, permitiria que uma avaliação do custo/benefício do uso da reposição hormonal pudesse ser obtida antes de sua aplicação em larga escala.


Para entendermos as funções de uma célula, temos que estudar todos os genes simultaneamente


Enquanto uma estratégia global baseada nos princípios da genômica e na utilização dos recursos da informática não for desenvolvida, estaremos, ao mesmo tempo, correndo riscos desnecessários e, talvez, perdendo oportunidades. O primeiro passo nessa direção foi dado no início de 2001, com o término da primeira fase do projeto de sequenciamento do genoma humano.
Diferentemente das demais áreas da biologia, a genômica não está atrelada à forma convencional de fazer ciência, que consiste em formular hipóteses para solucionar problemas pontuais. Na área da genômica, a formulação de hipóteses é, em um primeiro momento, irrelevante, pois não é possível formular hipóteses com base no desconhecido. A genômica visa, acima de tudo, a descoberta do desconhecido. Inferir a função de um gene ainda não conhecido seria equivalente a especular sobre a biodiversidade da Amazônia antes da descoberta das Américas.
Na genômica, a formulação de hipóteses passa a ser uma segunda etapa, dependente da descoberta dos genes, da caracterização do genoma e do processamento dos dados com o auxílio de recursos computacionais. A genômica está mudando de forma definitiva os horizontes da biologia e da medicina.
Pela primeira vez, podemos iniciar estudos sobre todos os genes de um organismo de maneira simultânea. Os resultados obtidos são surpreendentes, sendo possível identificar alterações no funcionamento do conjunto completo de genes de uma levedura -um organismo unicelular de grande importância comercial e acadêmica e cujo genoma foi determinado em 1997. Por exemplo, é possível detectar alterações no funcionamento de mais de mil dos 6.000 genes da levedura decorrentes da substituição de um único açúcar em sua fonte nutricional.
O grande desafio da medicina moderna é a melhoria do tratamento e do diagnóstico de doenças complexas, como o câncer, que são resultantes de múltiplos fatores ambientais e genéticos. Apesar do investimento bilionário e de décadas de pesquisa no mundo inteiro, o progresso real na luta contra as formas mais comuns de câncer foi limitado e a realidade é decepcionante. A ciência convencional, voltada para o estudo dos genes de forma isolada, não foi capaz de produzir as curas tão esperadas. Com o desenvolvimento da genômica as possibilidades se renovam.
A genômica não pode ser entendida como um produto final, mas sim como um meio para formular hipóteses e resolver problemas mais abrangentes e complexos -deve ser entendida como uma ciência geradora de hipóteses, e não dirigida por hipóteses. Para entender e fazer genômica, é preciso quebrar o paradigma científico e passar a entender a biologia em toda a sua complexidade e de forma matemática.
Em ciência, a mente humana só é capaz de entender e visualizar sistemas simples e desenhar experimentos simples. A formulação de hipóteses que envolvem sistemas complexos só poderá ser realizada por homem e computador juntos. Em um futuro não muito distante, os formuladores de hipóteses revolucionárias serão os cientistas que dominarem e desenvolverem a genômica e a biologia computacional.
Que bom que o Brasil já abraçou a genômica e está preparado para participar das próximas inovações na medicina, na agricultura e na ciência básica.


Andrew J. G. Simpson, 47, biólogo, pesquisador do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, é coordenador do Projeto Genoma da Xylella fastidiosa e do Projeto Genoma Humano do Câncer (Fapesp/Ludwig) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Anamaria A. Camargo, 30, bióloga, pesquisadora-assistente do Instituto Ludwig, é coordenadora do projeto Transcript Finishing Initiative (Fapesp/ Ludwig).



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