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São Paulo, terça-feira, 26 de agosto de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Mediocridade

A situação do Brasil parece ruim. Duas semanas viajando e discutindo pelo país afora convenceram-me de que ela é muito pior do que parece.
Visto do ângulo de sua vida econômica, o país marcha (no melhor caso) para a perpetuação da mediocridade: crescimento baixo e frágil, gestos inconsequentes de política social, abdicação nacional premiada com respeitabilidade internacional. Visto da perspectiva de sua vida republicana, o Brasil regride: imprensa comprada, partidos suplicantes, conchavos entre os poderosos e os endinheirados, silêncio do direito diante do poder.
O tom do regime é o de uma pequena burguesia entusiasmada com os confortos mais vulgares -desde os robes de algodão egípcio até as comilanças intermináveis. As fisionomias desfibradas e sorridentes, as figuras fofas e gozadoras, pródigas em brincadeiras, bebedeiras e choradeiras, dadas a comer, a viajar e a falar, mas sem apetência para fazer, construir e inventar, a frouxidão generalizada nas mentes e nos corpos encarnam deboche que o país prefere desconhecer. Talvez porque, ao se identificar com o presidente, a população ainda não tenha recolhido a lição do provérbio turco: "Quando o machado entrou na floresta, as árvores disseram: "O cabo desse machado é um de nós'".
O chefe de Estado encena papel gasto: o do humanizador do inevitável -preocupado com os pobres, confiável aos ricos, e disposto a sacrificar a classe média para demonstrar tanto a preocupação quanto a confiabilidade. Papel a que a mídia brasileira, quase toda ela quebrada, dá cobertura, com entrevistas bajuladoras do presidente, transmitidas em veículos agraciados com dinheiro público.
Não seria possível cair tão baixo se o pensamento brasileiro não houvesse renunciado à tarefa de repensar as possibilidades do país. Se as vozes mais influentes não sustentassem todos os dias a tese absurda (e jamais posta em prática em qualquer lugar) de que é preciso ser Hoover para poder ser Roosevelt. E se os que ocupam posições de prol em todos os departamentos da vida nacional não se sentissem tão desorientados, impotentes e pequenos.
Que conclusões devemos depreender desse desastre, que é moral e intelectual antes de ser político ou econômico? A primeira conclusão é que o PT se está revelando um desvio na história do Brasil. Veio, com a ajuda da igreja e da intelectualidade, para substituir o velho trabalhismo brasileiro. A substituição não presta: acabou em rendição. É preciso voltar atrás e retomar o fio da história brasileira ali onde ele foi rompido.
A segunda conclusão é que a degradação que vivemos condiz com apenas metade da realidade do Brasil de hoje: a metade podre. A outra metade é um país que transborda em formas desencontradas e reprimidas de energia e de engenho.
Faltam agente e instrumento para impor este Brasil àquele. Os partidos estão desacreditados. Os políticos conhecidos nacionalmente estão acumpliciados com o mal que nos aflige. Eis uma situação como aquela que os matemáticos chamam de caótica: superficialmente estável, porém sujeita a reversão repentina e radical. Só há um jeito de provocar tal reversão: lutar contra, até que outro rumo se patenteie e seus agentes se identifiquem. Até que os brasileiros sintamos vergonha de esperar tão pouco do Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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