São Paulo, quarta-feira, 26 de outubro de 2011

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O grito dos espoliados nos EUA

JORIO DAUSTER


A reação republicana é de ira, mas os operadores do Partido Democrata também temem algo que possa espantar os financiadores da campanha

O uso das ruas e das praças como palco para manifestações de protesto chegou inesperadamente aos Estados Unidos se valendo das mesmas redes sociais com que a internet começou a reescrever a história no mundo árabe.
Sem uma lista de reivindicações -mas com o genial slogan "Ocupem Wall Street"-, gente que se diz mandatária de 99% da população veio dar um basta à ganância do 1% que se apropriou de um terço da riqueza nacional.
Em pouco tempo o movimento se estendeu por todo o país, apesar de caracterizado como "luta de classes" por Mitt Romney, favorito para concorrer à Presidência pelo Partido Republicano.
Para tanto, foi necessária uma crise de proporções imprevisíveis que dura quatro anos, com milhões de casas tomadas pelos bancos e padrões de consumo em queda, além de cerca de 24 milhões de desempregados e subempregados.
E são esses que agora, transitando da frustração para a raiva, se insurgem contra os que os empurraram para o buraco e se recusam a abrir mão de seus privilégios.
O processo decorre da "financeirização" da economia que se seguiu aos choques do petróleo e do predomínio da filosofia neoliberal do Partido Republicano.
Tão poderosas foram essas forças que Bill Clinton, convivendo com um Congresso de maioria republicana, patrocinou em 1999 a desregulamentação bancária que está na gênese da hecatombe atual.
Desde então se instalou um mandarinato cujos integrantes transitam livremente entre grandes instituições financeiras, governo e universidades, acumulando experiências variadas e muito dinheiro.
E foram esses privilegiados -sob a forma de altos salários, bônus milionários e mirabolantes opções de ações- que se apropriaram nas últimas décadas de um quinhão rapidamente crescente da riqueza nacional. Isso pode ser visto pela evolução do índice Gini, que mede a distribuição de renda.
Entre 1947 e 2007, o índice subiu nos Estados Unidos de 38 para 46. Mantidas as tendências atuais, o Brasil, que saiu de 63 em 1990 para 54 em 2008, poderá em breve exibir uma distribuição mais justa que a dos Estados Unidos!
A eleição de Barack Obama sinalizou uma primeira reação popular, pois sua plataforma preconizava a redução dos impostos sobre a classe média, a extensão dos serviços de saúde a todos e a recuperação do setor educacional.
Contudo, montando sua equipe com membros da oligarquia, incapaz de mover a economia malgrado os pacotes trilionários bancados à custa da explosão da dívida pública e de deficit orçamentários, Obama não reformou o sistema financeiro nem controlou a remuneração dos executivos, fazendo com que as suas chances de reeleição dependam de uma duvidosa retomada econômica.
E eis que se ouve o grito dos espoliados. Que efeito terá na eleição de novembro de 2012?
A reação republicana é de ira, mas os operadores do Partido Democrata também temem algo que pode espantar os financiadores da campanha. Entretanto, custa crer que nada se altere após o surgimento deste novo animal político sem lenço e sem documento.
Por quanto tempo a raiva surda fará com que tantos acampem nas ruas? Poderá o movimento manter seu caráter pacífico? Ou, tragicamente, dele brotarão mártires, como ocorre em outras paragens? O tempo dirá se o sistema político saberá reconhecer que é hora de mudar de rumo.

JORIO DAUSTER é embaixador, consultor de empresas e tradutor. Foi presidente da Companhia Vale do Rio Doce (1999 a 2001) e do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (2003 e 2006).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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