São Paulo, terça-feira, 27 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A volta da barbárie

JORGE BOAVENTURA

A um clássico do pensamento liberal, Stuart Mill, em sua famosa obra "Do Governo Representativo", deve-se a sentença: "O que os homens fazem depende do que eles pensam". A que nos atrevemos a acrescentar: e do que eles sentem. No mesmo sentido, pronunciou-se Gustave Le Bon, em "Prémières Conséquences de la Guerre": "O destino dos povos depende das idéias que os vão dirigir". Em idêntica direção e com maior profundidade, assim pronunciou-se Fulton Sheen, em sua clássica "Angústia e Paz": "A desordem que reina na sociedade, reinou primeiro no coração e na mente dos que a compõem".
Por outro lado, na fonte cultural factualmente indiscutível da civilização ocidental a que pertencemos, encontra-se a sentença "supondo-se sábios, tornaram-se estultos", a que oferecemos o contraponto: "Supondo-se práticos, tornaram-se bárbaros".
De fato, quando, no coroamento de um esforço multissecular, fizerem inscrever na "Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos", consequente à Revolução Francesa de 1789, que "a lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes", a que se acrescentou adiante "que ninguém seria obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, a não ser em virtude de lei", por detrás de aparência tão nobre e que hoje constitui a espinha dorsal do que vem sendo chamado de democracia -e, já agora, tornou-se objeto de implantação obrigatória, à força, se necessário, a ser aplicado pelos da nação pluriestatal, de poderio hegemônico, constituída pelos verdadeiros bárbaros contemporâneos-, o que se fez foi desvincular a civilização da sua fonte cultural.


Ao varrerem o referencial de valores representado pelas Escrituras, tornaram epidêmica a corrupção


São eles os adoradores do "deus" mercado, versão moderna do bezerro de ouro, os quais, vitimados pela própria barbárie que lhes vai no íntimo, vêm tornando o mundo em que vivemos no inferno que, a cada dia mais claramente, angustia e patenteia-se diante dos olhos de todos. É que está em ação o que chamamos de "Segundo Plano da História", não no sentido das teorias do planejamento, mas, melhormente, no das leis da perspectiva.
Segundo as nossas raízes culturais judaico-cristãs, trata-se da Providência, que concedendo livre arbítrio ao homem, não os impede de fazerem aquilo que decidam fazer; mas não os dispensa de colherem os frutos e consequências do que fizerem. Assim, quando, no art. 6º da declaração mencionada acima, fizeram "tábula rasa" das Escrituras e entregaram tudo ao arbítrio de maiorias manipuláveis quanto à composição e à natureza das leis a serem elaboradas, fizeram-no baseados em erros crassos -como, por exemplo, serem maiorias fontes necessárias de verdade. O que realmente desejavam, e conseguiram, era empolgar as rédeas do processo histórico, de vez que os que comandam a nação pluriestatal a que já nos referimos dispõem dos meios para, pela manipulação das emoções populares, tangerem as multidões para as urnas, de sorte a fabricarem as maiorias de que precisam.
Ao varrerem, porém, o referencial fixo de valores representado pelas Escrituras, tornaram epidêmica a corrupção em todos os seus sentidos, a qual, fundada em outro erro crasso consistente na confusão entre o conceito de liberdade, no plano metafísico, com o exercício da liberdade por parte de seres que, como somos todos, trazemos tendências boas e construtivas, a par de outras, egoísticas e anti-sociais, acarretou a desordem generalizada e denunciadora da sua verdadeira fonte. Essa, em desespero, multiplica as violências e os erros de que é autora, e já não consegue mais ocultar a sua verdadeira face. E cada vez afunda mais, como ocorre a alguém que está afundando em areia movediça.
Não para jactar-nos, mas para que o leitor preste mais atenção ao que estamos oferecendo à consideração da sua inteligência e da sua consciência, queremos dizer-lhe que, muitos meses antes de acontecer, afirmamos e publicamos que viria o ataque ao Iraque, qualquer que fosse a opinião da ONU -o que mostra o quanto levam a sério as maiorias, os mentores da nação pluriestatal-, que o referido ataque ocorreria, o mais tardar, em meados de março e, o que tantos consideraram loucura à época, que os perdedores seriam os agressores.
Em texto recentemente publicado nesta Folha, o seu brilhante colaborador Clóvis Rossi -e, por favor, não pense o leitor que estamos insinuando que esse excelente cronista pensa como nós- realizou excelente metáfora, consistente em comparar a iniciativa do sr. Bush "et caterva", que, alegando suprimir o terrorismo, não fez mais do que abrir a caixa de Pandora de onde esse eclodiu e, cada vez mais, se multiplica e se espalha pelo mundo.
Por favor, leitor amigo, procure refletir sobre o art. 6º da "declaração", sobre a depravação do ideal democrático a que chamam de democracia e, libertando-se da magia da propaganda, veja os frutos que estão patentes aqui e no mundo inteiro. Afinal, parece muito sábia a lição "pelos frutos os conhecereis".

Jorge Boaventura, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.


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