São Paulo, quinta-feira, 27 de janeiro de 2005 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Tributos e benesses do poder
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Quando Kant imaginou que, se todos os países fossem republicanos, a guerra terminaria, pois os povos não a desejariam nunca, acreditava que, nas repúblicas -em verdade, pensava nas democracias-, os cidadãos é que definiriam os seus destinos e não os governos. Não só as guerras não terminaram com as democracias como o povo nunca delibera sobre o principal instrumento de domínio dos governos, que é o tributo. E os governantes sabem disso, principalmente no Brasil, que tem a maior carga tributária do mundo, se considerada a carga tributária arrecadada (38% do PIB, segundo dados do IBDT), a carga tributária prevista na legislação, mas não arrecadada por força da informalidade e da corrupção (mais ou menos 20% do PIB), e o que o cidadão tem que despender para se autoprestar serviços públicos (mais ou menos 10% do PIB), correspondente à diferença entre o que é despendido nos países que prestam serviços públicos (civilizados) e nos países que não prestam serviços públicos adequados (emergentes) a sua população. A soma dos três itens eleva a "carga tributária legal" a mais de 60% do PIB. Compreende-se, pois, o "passa moleque tributário" do fim de ano. Teve o governo o ano inteiro para discutir, no Congresso Nacional, a questão tributária, para que a sociedade pudesse participar dessa discussão. Esperou, entretanto, transcorrer 364 dias do ano e, no último, lançou um pacote de "horrores tributários", via medida provisória, para aumentar violentamente o peso fiscal sobre os prestadores de serviços, retirar ainda mais o direito de defesa dos pagadores de tributos e prejudicar os pequenos e médios contribuintes, que já não poderão contar, para contestar o arbítrio fiscal, com a garantia do duplo grau, na instância administrativa. E o pacote de surpresas desagradáveis que atinge o bolso da sociedade sem que esta tivesse tido oportunidade de se defender -pois decretado por um homem só, o presidente da República- vem no mesmo momento em que o avião presidencial chega ao custo, só de compra, de US$ 57 milhões, fora o custo de manutenção, muito superior ao de qualquer aluguel de avião internacional para utilização nas visitas oficiais do governo. Vem no mesmo momento em que se constata que: o país gastou menos em saneamento básico do que na compra desse avião; os senhores parlamentares aumentaram sua verba de representação muito acima da inflação (25%); o STJ eleva consideravelmente a remuneração de seus servidores; a imprensa divulga reformas do "habitat" presidencial. Enfim, as benesses do trem da alegria se multiplicam, tudo à custa do povo, que jamais é chamado a opinar, em matéria tributária. Como sabe o governo que o povo está revoltado, nas medidas provisórias introduziu fortes componentes para redução do direito de defesa do contribuinte, porque é necessário assustá-lo com medidas, sanções e restrições cada vez maiores, a fim de que não pense em discutir qualquer arbitrariedade fiscal. Nem consegue o governo disfarçar que, cada vez que oferece um dedo ao cidadão, lhe decepa o braço. Quando ofereceu a não-cumulatividade de PIS e Cofins, elevou em mais de 50% a arrecadação desses tributos por calibragem excessiva da alíquota. Agora, para corrigir a tabela de pessoa física abaixo da inflação, vale dizer, sem ofertar nada ao contribuinte, mas até aumentando a tributação além da inflação acumulada, que foi, nos últimos dois anos de governo, superior a 10%, aumentou em 25% a tributação do imposto de renda e contribuição social sobre o lucro do segmento dos prestadores de serviços, hoje o segmento que mais emprega no Brasil e que já se diferencia das pessoas físicas por pagar outros tributos, como PIS e Cofins. Aos 70 anos, dos quais 46 dedicados ao estudo do direito tributário, estou cada vez mais convencido de que o tributo não tem nenhuma função social. O povo recebe apenas -e às vezes- o efeito colateral, em serviços públicos, dos tributos que é obrigado a entregar ao governo, pois a verdadeira função do tributo é a manutenção dos detentores do poder e atender às benesses oficiais, aos privilégios que os cidadãos de primeira categoria (governantes) têm em relação aos de segunda categoria (o povo em geral). O tributo é apenas o principal instrumento de domínio governamental. Ives Gandra da Silva Martins, 70, advogado tributarista, professor emérito da Universidade Mackenzie, da UniFMU e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, é presidente da Academia Paulista de Letras. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Jorge Antunes: O Brasil pode orquestrar o mundo? Índice |
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