UOL




São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Recarga, não. Reforma, sim

JOSÉ ROBERTO R. AFONSO

A reforma tributária voltou à agenda nacional. O presidente e os governadores acordaram defender uma proposta que promovesse a justiça fiscal, a competitividade econômica, a simplificação do sistema e a redução da sonegação, mantendo a receita de cada governo e ampliando a base tributária sem aumento da carga. Esses princípios são um consenso nacional. Mas, cada vez mais, tributaristas, empresários e autoridades criticam as medidas detalhadas pelo governo federal como insuficientes para atender aos princípios.
Cadê a reforma? Certamente ela não está no projeto do governo. Este altera só oito das dezenas de tributos cobrados no país. Em nada são alterados tributos que geram metade da arrecadação nacional (cerca de R$ 480 bilhões). Da outra metade, 46% dependem de legislação complementar -caso do ICMS, que ocupa a maior parte do texto-, mas, no final do projeto, descobre-se que não têm data para entrar em vigor.
Apenas duas mudanças serão auto-aplicadas, e implicarão mais aumento da carga tributária. A CPMF será prorrogada, e com alíquota fixada em 0,38%, em vez de sua conversão imediata em tributo permanente, tendo aquela apenas como alíquota máxima. O ICMS não terá nenhum novo incentivo fiscal: por exemplo, se já valesse a emenda como o governo federal propôs, este não poderia ter pedido e obtido do Confaz isenção para doações de alimentos ao programa Fome Zero, nem para ampliar a lista de remédios essenciais, de modo que até eles pagariam ICMS. Até a cesta básica pagará mais ICMS sem as reduções que hoje são concedidas por leis estaduais, principalmente porque o projeto determina que a alíquota sobre a venda de um item dessa cesta em um Estado seja igual à cobrada nas compras feitas nos Estados produtores. Logo, só se reduzirá o ICMS sobre a cesta básica impondo perdas significativas às receitas dos Estados que concentram a produção de alimentos.
Se o país precisa urgentemente de uma reforma tributária, não serve qualquer projeto -muito menos esse, que aumenta mais a carga, que já é alta e de péssima qualidade. Mais de 36% do PIB, o nível atual de tributação já é o maior de nossa história, tendo sofrido aumento sem precedentes no Ocidente fora de esforços de guerra e, pior, dependendo muito de tributos indiretos, com bases cada vez mais estreitas e cumulativas, que conspiram contra a competitividade externa da nossa economia.
O presidente Lula prometeu, na campanha eleitoral, que não mais aumentaria os impostos e não está cumprindo. Agora, acaba de prometer ao presidente Bush adotar a Alca no cronograma original -será que cumprirá? Se for para valer mesmo, muda radicalmente a cena da reforma tributária. Com a Alca, não bastará evitar uma recarga tributária que atrapalhe a retomada do crescimento. Será imperioso avançar muito e rapidamente na remoção dos males tributários que punem o produtor e o exportador brasileiros vis-à-vis seus competidores externos. Abrir nosso mercado aos EUA sem antes consertar suas graves distorções tributárias poderá ser mais do que o dito estelionato eleitoral: poderá matar a produção nacional.


As propostas do governo federal não representam a reforma tributária prometida à sociedade


Para reformar o projeto de reforma tributária é preciso, antes de tudo, reavaliar os nossos males tributários. Há um foco exagerado do projeto no ICMS estadual. Talvez para desviar as atenções do fato de que o maior dano para a competitividade nacional venha das contribuições cobradas pela União.
O projeto perde a oportunidade de acelerar a mudança da Cofins, aproveitando o bem-sucedido laboratório com o PIS das grandes empresas, que passou a incidir sobre o valor adicionado sem provocar as perdas de receita que tanto temiam alguns. Também foi esquecida a promessa de converter a CPMF em um tributo de caráter fiscalizador, e não mais arrecadador, com alíquotas decrescentes ou antecipando a cobrança de outros tributos federais -ainda que o ajuste fiscal exija uma mudança gradual, a reforma deve determinar desde já a trajetória decrescente dessa carga.
Mesmo no caso do ICMS, o projeto exagera no foco na guerra fiscal (hoje arrefecida pela Lei de Responsabilidade Fiscal e, principalmente, pela drástica redução dos investimentos produtivos). Talvez para, mais uma vez, despistar o fato de que não se quer ou não se sabe como enfrentar os problemas mais prementes e complexos desse imposto, quais sejam, a crescente tributação indireta das exportações e dos investimentos, pois as Fazendas estaduais têm retardado ou negado a devolução do imposto cobrado na cadeia de produção dos bens exportados e incidente sobre máquinas e equipamentos adquiridos para integrar o capital fixo.
Como a atual política econômica derruba o mercado interno e deixa no externo a única fonte de dinamismo, as vendas que mais crescem são as que nada recolhem de ICMS. Está se induzindo a formação nos fiscos estaduais de um perigoso viés antiexportador. Isso foi agravado pela inclusão no projeto de reforma, acertadamente, da não-incidência de ICMS sobre exportações de produtos não-industrializados, mas com a omissão indevida de transferências federais aos Estados exportadores de tais bens -o que levará a uma situação absurda em que a Constituição determina que a União dê compensações financeiras (10% do IPI) só para Estados exportadores de produtos industriais.
Enfim, as propostas do governo federal não representam a reforma tributária prometida à sociedade. É um projeto que pouco muda, e não se sabe como ou quando esse pouco vai mudar, pois as decisões mais relevantes foram deixadas para leis posteriores. Parece que há uma opção por aprovar algo, independente do que signifique ou no que resulte, mas que o marketing oficial possa chamar de reforma. A economia pode não suportar uma recarga tributária, que atrapalhará a sonhada retomada do crescimento. O país precisa de mudanças que desonerem as exportações, os investimentos e o emprego, isto é, de uma reforma tributária para valer.

José Roberto R. Afonso, 42, é economista de carreira do BNDES, cedido à assessoria técnica da Câmara dos Deputados.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Jack Terpins: A comunidade judaica e o Fome Zero

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.